“O que significa para ti o 25 de Abril?”

Dois adultos sentados à minha frente. A sua conversa não me detém o interesse mas sou puxada para ela quando um deles, numa clara tentativa de provar um argumento, me pergunta:

“O que significa para ti o 25 de Abril?”

A minha resposta está pronta e nasce do alto da arrogância adolescente:

“É um feriado.”

Não foram necessárias mais palavras, o olhar de “esta geração perdida que nem conhece o valor da liberdade de expressão” soou bem alto. A minha condescendência para com este olhar que não me era desconhecido reciprocou:

“Sim, eu sei o que foi o 25 de Abril, ok? Liberdade e tal…”

Será que sabia?

Um dia estava em casa do meu tio, aquele que tem as paredes forradas de livros. Estava a dar uma vista de olhos por uma estante e encontro um livro que me chamou a atenção pelo título em alemão. O meu tio não fala alemão. Abri o livro e decidi que era um livro de ideologia nazi. O meu tio é de esquerda. Exigi uma explicação:

“Uma vez estava a passar por uma livraria e a PIDE estava lá dentro a atirar livros cá para fora para os queimar. Peguei em todos os livros que consegui salvar e fugi. Esse foi um deles. Um livro não se deita fora…”

Num outro dia estava no sótão de minha casa e encontrei uma espécie de panfleto de cariz político.

“O teu tio estava na política, a lutar contra a ditadura. Chegou a fazer parte do LCI…”

Não vivi o 25 de Abril de 1974. Não vivi os anos da ditadura Salazarista. Mas cresci a ouvir estas crónicas que nunca foram apenas a narração genérica e impessoal de uma aula de história. Estes foram testemunhos muito pessoais de quem viveu aqueles momentos importantes para Portugal. E estes testemunhos surgiam sempre na sequência de alguma coisa que tinha acabado de acontecer:

“Isto na ditadura não passava.”

Era o mote que dava início a mais uma história, que ouvia e que guardava naquele recanto do cérebro, destinado à construção do sentido do que é ser português.

Naquele dia, anos atrás, com os dois adultos sentados à minha frente, a tentar encontrar o sentido da sua luta espelhado na nova geração, a minha cabeça tinha outras preocupações mais imediatas do que acalmar o espírito inquieto de quem olha para o exercício da liberdade como um privilégio. Estávamos no restaurante de um parque temático, centenas de pessoas de várias nacionalidades, etnias e credos à nossa volta, todos unidos pela vontade de passar um triunfante dia de Verão na montanha russa. Aquela circunstância em que nos encontrava-mos, de todos termos crenças diferentes e de, mesmo assim, partilharmos um espaço de forma despreocupada, não ocupava um segundo do meu pensamento. Era-me natural. E isso não é um problema. Normalizar a liberdade e interiorizar o seu significado são dois conceitos que não se excluem mutuamente. A minha geração normalizou a liberdade. E é isso que ela deve ser… normalizada. Mas a minha geração também conhece o seu significado, sabe que ela nem sempre existiu e sabe-o porque tem a experiência indireta dos seus avós, tios, pais… Eu tenho essa experiência indireta porque a minha avó me contou de quando o meu tio chegou a ser preso pela PIDE, porque vi aquele livro de conteúdo questionável numa estante, porque fulano foi para a rua no dia da revolução, porque sicrano passou fome no Portugal de Salazar.

Para mim, o 25 de Abril não é apenas um feriado, e, por mais que a adolescente que fui quisesse fazer parecer o contrário, já não o era naquela altura. Eu reconheço, e reconhecia naquele dia anos atrás, a importância de ter a liberdade de mostrar respeito ou despeito por ela.

O 25 de Abril trará memórias do passado a quem o viveu e deferência por estes para quem não o viveu. Estas gerações podem, todos os anos, levantar uma mão com um cravo na Avenida da Liberdade num entendimento conjunto desta mesma Liberdade.

Mas e agora? E agora que é à minha geração que cabe passar um testemunho aos mais novos? Tenho certamente as lutas da minha própria geração para passar, mas então e a liberdade? Como é que conto algo que já me foi contado a mim? Como é que explico que o 25 de Abril não é apenas um feriado?

Joana Pinto pertence ao do coletivo do Porto do DiEM25.

 

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