Nos últimos dias Portugal recebeu mais de 27 mil refugiados da Ucrânia. Como se justifica que em dois anos não tenhamos acolhido as 500 crianças e jovens do Mediterrâneo que nos comprometemos a receber e que têm estado em campos de refugiados nas condições mais indignas?
A invasão russa na Ucrânia gerou mais refugiados nas primeiras três semanas do que qualquer outro conflito recente durante um ano. Já fugiram do país mais de quatro milhões de pessoas e estima-se que haja perto de dez milhões de deslocados internos.
Face a esta enorme crise humanitária, a Europa tem mostrado uma solidariedade sem precedentes. Logo nos primeiros dias foram postas em prática medidas extraordinárias que visam garantir a quem foge da guerra os seus direitos e o acesso facilitado e acelerado à proteção internacional. Países que há menos de uma década se insurgiram contra o sistema de quotas da União Europeia (UE) e dos quais se podia esperar tudo menos solidariedade para com refugiados abriram agora as portas para receber as famílias que fogem das bombas russas.
À Polónia já chegaram mais de dois milhões de pessoas, sendo neste momento o país que mais refugiados ucranianos acolheu. No Reino Unido foi criada a plataforma Homes for Ukraine, em que os cidadãos britânicos se podem voluntariar para providenciar alojamento a famílias ucranianas por um mínimo de seis meses. Estas famílias terão acesso imediato a saúde, educação e segurança social.
Também em Portugal foram criadas medidas especiais para o acolhimento rápido de cidadãos ucranianos. O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) criou a plataforma online SEFforUkraine onde as pessoas podem pedir proteção temporária ao Estado português, um estatuto semelhante ao de refugiado, mas com o prazo de um ano e renovável por mais um. Segundo o SEF, neste momento é possível uma pessoa pedir proteção e obtê-la no mesmo dia, sem sequer passar por uma entrevista em que, no processo usual, se decidiria o mérito do pedido.
Estou comovido com a rapidez de mobilização de que demonstrámos ser capazes para ajudar quem mais precisa. E é precisamente por isso que considero que, enquanto sociedade, é urgente fazermos uma reflexão conjunta sobre o modo como temos tratado os refugiados não-ucranianos.
Quando as notícias nos mostraram famílias sírias, iraquianas e afegãs lançando-se em barcos de borracha numa tentativa desesperada de encontrar segurança nas costas europeias, inúmeras vozes levantaram-se contra o acolhimento. Houve um grande esforço de solidariedade por parte da sociedade civil e de alguns estados, é certo. Mas essa posição foi vista nos meios de comunicação social como um dos lados do debate público, tão válido quanto o oposto. Ouvimos todo o tipo de argumentos questionando o que o acolhimento de refugiados faria à nossa prezada sociedade europeia.
No conflito dos dias de hoje o consenso é de tal forma grande que até os partidos de extrema-direita, que normalmente hasteiam com orgulho a bandeira anti-refugiados, procuram atabalhoadamente justificar a mudança repentina de posição chegando ao ponto de exclamar que estes é que são os verdadeiros refugiados.
Desta vez não ouvimos ninguém questionar a sustentabilidade do Estado social. Não vemos ninguém dizer que a criminalidade vai aumentar. E ninguém a invocar a ameaça do terrorismo. E porquê? Não é porque haja algo de fundamentalmente diferente entre uns refugiados e outros. Todos fogem da violência e todos procuram segurança e uma vida digna para si e para os seus. É porque estas objeções não passam de mitos. São mitos agora e já o eram quando o mundo se chocou de mãos nos bolsos ao ver o corpo do pequeno Alan Kurdi arrastado até à praia turca pelas ondas do mar e pela indiferença europeia.
No entanto, importa dizer que, quando falamos apenas da mobilização da sociedade civil, as diferenças não são assim tão grandes. Na altura em que refugiados sírios chegavam aos milhares por dia à costa das ilhas gregas, mais de 350 organizações não-governamentais portuguesas coordenaram esforços para acolher as famílias que aterrariam no nosso país no âmbito do Programa de Recolocação da UE. Foi criada a Plataforma de Apoio aos Refugiados. De braços abertos estas organizações aguardaram a chegada das pessoas enquanto estas, por sua vez, esperavam pacientemente que o Programa cumprisse o que prometia. O Programa de Recolocação falhou espetacularmente, e não foi só porque alguns países se recusaram a receber fosse quem fosse. A falta de meios para agilizar os processos, bem como os restritíssimos critérios de elegibilidade fizeram com que o número de refugiados acolhidos não passasse de fogo-de-vista. De facto este plano foi revelado pela UE em Setembro de 2015 e seis meses depois tinham sido recolocados apenas 660 refugiados pela Europa toda, sendo que esta se propunha a recolocar 160 mil. Embora a sociedade civil do nosso país estivesse disposta e preparada para acolher, foram os processos burocráticos e as decisões dos governos europeus e da UE que impediram (e continuam a impedir) que isso acontecesse.
A guerra na Síria, no Iraque e no Afeganistão obrigaram vários milhões de pessoas a abandonar as suas casas e as suas vidas ao longo dos últimos anos, muitas das quais não tiveram um tratamento digno nos países de trânsito e de chegada. Neste momento há milhares de refugiados mantidos em campos na Grécia que esperam meses a fio por uma resposta aos seus pedidos de asilo, pernoitando em tendas, sem saber se lhes será concedida proteção ou se serão deportados. Enquanto isso, organizações não-governamentais têm vindo a alertar para uma fome generalizada nestas populações na Grécia, 40% das quais são menores de idade.
Note-se que a relutância em acolher bem não tem nada que ver com falta de recursos. Nos últimos seis anos, a UE em geral e os Estados-membros em particular atiraram milhares de milhões de euros a países como a Turquia e a milícias criminosas, como no caso da Líbia, para manter as pessoas longe das suas fronteiras, sem sequer a possibilidade consagrada pelo direito internacional de pedir asilo. Exploro este tema em detalhe noutro texto que escrevi no PÚBLICO.
Em Portugal, o Ministério dos Negócios Estrangeiros fez alguns acordos bilaterais com vários países pelos quais se comprometeu a receber refugiados. Fez bem. Mas não se compreende o tempo que estes pedidos demoram a ser efetivados nem o número reduzido de pessoas que nos propormos a receber. Face à tragédia humanitária nas ilhas gregas, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva comprometeu-se a receber 500 menores não acompanhados em Maio de 2020, no início da pandemia. Quase dois anos depois, em Dezembro do ano passado, ainda não tínhamos recebido nem metade.
Ora nos últimos dias Portugal recebeu mais de 27 mil refugiados da Ucrânia, tornando essa nacionalidade na segunda maior nacionalidade estrangeira a residir no nosso país. Como se justifica que decorridos dois anos ainda não tenhamos conseguido acolher 500 crianças e jovens que nos comprometemos a receber e que têm de passar esse tempo em campos de refugiados nas condições mais indignas? Além disso, segundo o Diário de Notícias, ainda em Agosto do ano passado o SEF tinha pedidos de regularização de imigrantes pendentes com quatro anos de atraso. Como podemos justificar os meses ou anos a fio que imigrantes em Portugal passam à espera que o SEF avalie os seus processos depois de esta instituição pôr de pé um sistema tão eficiente para os refugiados ucranianos? Porque não conseguimos aplicar uma fração dessa eficiência a todos aqueles que necessitam dela?
É urgente comparar a maneira como recebemos refugiados de países diferentes, para podermos aprender com os nossos erros. Não é para relativizar a dor dos que recebemos bem. É para apontar o dedo aos nossos representantes por nos terem dito durante anos que receber melhor era impossível. Provámos nos últimos dias que conseguimos acolher refugiados ucranianos com dignidade. Façamos o mesmo com todos os outros.
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