A tragédia ao largo da Grécia chocou o mundo e muito já se disse sobre o que se passou e o que resta averiguar. Mas um ponto fundamental tem escapado à espuma dos dias: isto não foi um acidente
Um navio de pesca sobrelotado com mais de 700 homens, mulheres e crianças naufragou no passado dia 13 de junho, ao largo da ilha grega de Pylos. Foram resgatadas 105 pessoas com vida e recuperados 81 corpos. A responsabilidade das autoridades está por apurar, mas é fundamental tirar consequências políticas. Isto não é um acidente.
O alerta foi dado pela ONG Watch The Med cerca de onze horas antes do naufrágio. O primeiro comunicado oficial da guarda-costeira grega indicava ter oferecido assistência, que foi recusada pelas pessoas a bordo. Porém, os relatos dos sobreviventes contam que as autoridades gregas tentaram rebocar o barco em direção às águas italianas, o que terá levado ao desastre. A utilização de cabos de reboque foi primeiro omitida e, poucas horas depois, confirmada pelas autoridades. Documentos públicos vieram ainda provar que as autoridades gregas pediram à agência europeia Frontex para não reportar o avistamento do barco e adulteraram as coordenadas. Desde então, os sobreviventes encontram-se em detenção e impedidos de falar à imprensa, sob segredo de justiça.
Esta tragédia chocou o mundo e muito já se disse sobre o que se passou e o que resta averiguar. Mas um ponto fundamental tem escapado à espuma dos dias: isto não foi um acidente.
Retornos forçados
Será plausível que as autoridades gregas tenham colocado centenas de homens, mulheres e crianças em perigo? Não só é plausível, como tem precedentes. Os pushbacks, ou retornos forçados, são prática comum – com 27 mil casos documentados desde 2020 – e constituem parte integrante da política europeia de fronteiras. Um relatório do gabinete anti-fraude da UE revela que centenas de casos ocorreram “com o conhecimento dos dirigentes de topo”, o que levou à demissão do diretor executivo da Frontex.
Nas horas que se seguiram à tragédia de 13 de Junho, representantes de ONGs e da guarda-costeira italiana vieram afirmar que não existe forma segura de rebocar um barco sobrecarregado. Se assim foi, aquilo que se passou é, na melhor das hipóteses, um crime por negligência e, na pior, um crime intencional. Mesmo que esta tese seja refutada, a obrigação legal de resgatar impõe-se, quando o alerta foi dado várias horas antes. Se não foi provocada, a tragédia era previsível e evitável.
Isto não é um acidente
Ao longo das últimas décadas, a política migratória europeia concentrou esforços no controlo de fronteiras e na dissuasão dos que se deslocam em busca de uma vida digna, em detrimento de políticas de acolhimento que permitam a gestão das chegadas.
Segundo a Organização Internacional das Migrações, mais de 27 mil pessoas morreram no Mediterrâneo desde 2014. Se um problema público, seja ele qual for, faz uma média de três mil vítimas por ano, é inaceitável que não se tirem conclusões capazes de transformar as políticas públicas.
As mortes no Mediterrâneo têm vindo a juntar-se a centenas de outras vítimas mortais nas fronteiras internas da Europa. Mortes ligadas à violência policial, mortes em circunstâncias pouco claras em centros de acolhimento e de detenção, mortes na sequência da exploração laboral, mortes em desastres e incêndios em campos de refugiados sobrelotados e ainda noutros naufrágios.
O principal argumento da extrema-direita, que se vai infiltrando aos poucos nos discursos dos partidos democráticos europeus, de que o elevado custo do acolhimento justifica medidas desumanas, cai por terra quando olhamos para as somas astronómicas que a Europa gasta nessas políticas: o orçamento de mais de 800 milhões de euros da Frontex, a construção de muros e redes de arame farpado, o desenvolvimento de tecnologia de ponta em sistemas de videovigilância e sensores de temperatura humana, os centros de detenção geridos por empresas privadas, o destacamento de forças de segurança, entre outras despesas. Cada uma destas medidas põe em evidência que a real intenção da política de migrações europeia não reside na proteção da vida, mas no controlo de fronteiras, custe o que custar.
Deixou, por isso, de ser possível dizer que estas mortes são acidentais. Elas são a consequência direta e trágica de políticas migratórias que procuram dissuadir e repelir migrantes, mesmo que isso signifique matar ou deixar morrer milhares de pessoas durante a sua busca pela sobrevivência. A inação europeia é a primeira responsável por estes números trágicos. Mais do que as ondas, ventos e marés que homens, mulheres e crianças são obrigados a enfrentar no desespero de fugir. Isto não é um acidente.
Desde o início da guerra na Ucrânia, a Europa demonstrou que é possível garantir o respeito pelos direitos dos refugiados e a eficácia nos mecanismos de distribuição entre Estados-membros dos pedidos de proteção. São necessárias vias legais e seguras de migração
Passagens seguras
O problema é político e, portanto, só a política o pode resolver. A tristeza demonstrada por alguns líderes europeus de pouco vale se a vontade de salvar vidas não se sobrepuser à vontade de as impedir de cá chegar.
Não há muito a fazer pelas vítimas do naufrágio de Pylos, mas podemos impedir que mais pessoas sofram mortes evitáveis. São necessárias vias legais e seguras de migração. Desde o início da guerra na Ucrânia, a Europa demonstrou que é possível garantir simultaneamente o respeito pelos direitos dos refugiados e a eficácia nos mecanismos de distribuição justa e razoável entre Estados-membros dos pedidos de proteção. Esta experiência baseou-se naquilo que a Europa se obstina a não aplicar: passagens seguras e legais e políticas de acolhimento e de integração eficazes.
Só uma política migratória que não ignora o desespero que leva 700 pessoas a arriscar-se num barco de pesca permitirá evitar aquilo a que nos recusamos hoje a chamar acidente. Só uma mudança do paradigma que nos conduziu até aqui permitirá criar um sistema humano e solidário. Quantos mais corpos terão de ser tirados do mar antes de levarmos a sério as decisões políticas que os levam à morte? Isto não é um acidente.
Este artigo foi originalmente publicado no Publico.pt
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