Assédio: Do latim obsidium, cerco ou cilada

O tópico dos assédios nas Universidades portuguesas já havia sido uma questão em 2022, na esteira das denúncias reportadas na faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, levando a pequenas manifestações na porta da faculdade e produzindo alguns resultados práticos, como um canal de denúncias para os casos de assédio. Os resultados, segundo jornalistas e pesquisadores, têm sido considerados pouco úteis, dado o facto de que a Faculdade não tem  estrutura para lidar com as queixas, ainda que elas apareçam. O tópico adquiriu novos graus de temperatura recentemente, com o sociólogo emérito da Universidade de Coimbra, Boaventura Sousa Santos, figurando como um dos acusados.

Dada a magnitude do caso, uma série de consequências se desenvolveram: a Universidade suspendeu o professor da direção do Centro de Estudos Sociais, também foi suspensa a coluna do sociólogo no jornal espanhol “público” e o Ministério do Ensino Superior afirma que punirá os responsáveis, caso a investigação confirme as acusações. Ainda que o sociólogo seja uma das figuras mais proeminentes da esquerda intelectual portuguesa, responsável pela criação de um centro de estudos dedicado ao pensamento decolonial, ao respeito e divulgação das epistemologias do sul e tendo, o próprio CES, mais abertura para o pensamento feminista, anti-racista e anti-sistémico do que qualquer universidade portuguesa, o caso de facto nos carrega para a necessária reflexão sobre os impactos do abuso de poder por parte de professores, orientadores e diretores na vida pessoal e profissional das mulheres.

Não sendo suficiente uma subtil, mas sistemática, desconsideração das pesquisadoras mulheres no universo académico; das muitas vezes invisível, mas insidiosa, preferência por pesquisadores homens no debate de qualquer assunto; na histórica e avassaladora pressuposição de que às mulheres deve ser relegado o lugar doméstico, cuidador e não o lugar da vida pública e política; as investigadoras ainda têm de passar pela indevida e não requerida aproximação sexual por partes dos homens em posição de poder. 

O assédio, ao contrário do que tem sido posto em muitos casos, nada tem de sedutor. Implicado em uma relação de poder institucional, ele reatualiza as posições de poder que são colocadas em xeque quando uma mulher se posiciona intelectual e profissionalmente. Uma mulher, diante de um professor e de um orientador, não é só uma mulher: é, ou quer-se, livre intelectual e economicamente. É produtora de conhecimento. É, também, uma consequência do movimento feminista que conquistou espaços de liberdade e igualdade. É preciso considerar, nesse sentido, que o percurso desenvolvido pelas mulheres na academia é um percurso que se quer de liberdade. É por meio da educação e da pesquisa que grande parte das mulheres se absolve dos lugares à elas historicamente relegados e é por meio da sua produção de conhecimento que novos pontos de vista sobre o mundo são adicionados à ciência.

O assédio, nesse sentido, acaba por atentar, de maneira consciente ou não, a essa liberdade. Porque o assédio, quando por parte de um homem em posição de poder – um diretor, um professor, um orientador – eventualmente nada tem de sexy, como os filmes do Polanski gostariam de retratar.   Acaba por ter, no seu lugar, um carácter de perversão: ao perceber a queda iminente do poder historicamente dado unilateralmente aos homens, de produzir conhecimento e de se posicionar intelectualmente a respeito do mundo, os professores lançam a sua última cartada – qual seja:   recolocam a mulher “no seu lugar”: o de objeto sexual.

A possibilidade de resposta da mulher, nessa relação e condição, é parca, e a eventual rejeição não significa a possibilidade de rejeição do seu acto a princípio. Ou seja, o imperativo moral que deveria reger um homem em posição de poder é dificilmente possível de ser criticado por essa mulher, por um motivo muito simples: ela se encontra, de facto, em uma posição subalterna em relação ao seu professor e orientador. E tem medo de acusá-lo e de ser vítima de retaliação; eventualmente tendo que abandonar o seu projeto ou pesquisa. O ambiente que deveria ser de crescimento intelectual torna-se muito rapidamente em um ambiente de opressão de género, gerando um grau de evasão escolar ainda pouco aferido.  É preciso, nesse sentido, que as Universidades tomem responsabilidade pelo seu princípio fundador, que é de produção e desenvolvimento do conhecimento, considerando que esse objetivo passa necessariamente pela produção de espaços livre de assédios, violências e discriminações.

Mais do que um canal de denúncias, e mais do que eventuais punições, as Universidades precisam criar um conjunto de mecanismos internos para a prevenção do assédio. Isso significa formar professores e alunos a respeito dos limites da sua função, bem como da possibilidade das alunas virem a denunciar esse tipo de comportamento. Os canais de queixa devem vir acompanhados de órgãos institucionais, com profissionais formadas, que sejam capazes de receber e encaminhar os casos, não permitindo que esse seja, por um exemplo, um facto determinante na questão da evasão escolar de alunas. Os impactos psicológicos que o assédio pode gerar, bem como os impactos materiais na vida das mulheres é de extrema relevância. Há uma série de profissionais qualificadas que podem trabalhar nas Universidades reconhecendo esses casos, recebendo as denúncias e, sobretudo, formando professores e alunas para que isso não aconteça. O que era considerado normal há décadas não o é mais. 

Considerando as décadas e séculos de luta feminista e a sua consequente  conquista de direitos — sendo o DIEM25 um representante, apoiante e articulador da luta das mulheres em direção a uma sociedade mais justa, igualitária e livre de opressões —-  subscrevemos integralmente as manifestações recentes, nos colocando lado-a-lado da construção de espaços cada vez mais livres, justos e democráticos, onde a presença das mulheres é percebida como uma mais-valia para o crescimento intelectual, político e cultural de um país –  e não só como objeto sexual. 

Mariana Varela
pelo DiEM25 Portugal

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