A Cultura do Empreendedorismo: o Burro, a Vara e a Cenoura

Quando era um jovem estudante, um dos meus grandes medos era acabar num trabalho ‘normal’ de escritório.

Apesar de me ter divertido em criança nos computadores do centro nacional de pensões, que por vezes visitava e onde a minha mãe trabalhava, a adolescência trouxe-me o pavor da ideia de que a grande maioria da minha vida seria passada sentado numa secretária na mesma empresa, acompanhado todos os dias e durante décadas, do mesmo espaço, do mesmo patrão e dos mesmos colegas.

O filme ‘Office Space’ (1999) conta a história de um destes trabalhadores de ‘colarinho branco’, em que a frustração vinda da repetitividade cinzenta do seu trabalho de secretária, transborda um dia numa crise mental.

O protagonista entra assim numa espécie de estado catatónico, e ao fim de uns dias reemerge com uma atitude quase ‘budista’ em relação ao trabalho, em que se desleixa com as horas, vai trabalhar vestido de t-shirt havaiana, e perde a ansiedade em relação à autoridade na forma dos seus chefes. Ironicamente, os seus chefes vêm a sua mudança de comportamento, não como uma transgressão fatal, merecedora de despedimento, mas pelo contrário promovem-no. Aproveitando esta nova margem de manobra, o protagonista engendra um plano com mais alguns trabalhadores: criam um vírus informático que desvia os ‘restos’ dos arredondamentos de milhões de transações financeiras, processadas pela empresa onde trabalham. É curioso notar que o vírus não está tecnicamente a roubar da empresa mas simplesmente a aproveitar os ‘restos’, numa espécie de reciclagem financeira que não prejudica de facto a empresa, mas enriquece os conspiradores.

É este tipo de ‘valor acrescentado’, uma substância fantasmagórica mas extremamente valiosa que é conjurada do nada, que a cultura do empreendedorismo incentiva os seus proponentes a descobrir. Um El Dorado encoberto em que abunda uma riqueza perdida, à mão de quem o conseguir alcançar.

Mas tal como o ‘El Dorado’ foi um mito dos tempos coloniais, talvez nos devêssemos perguntar se o empreendedorismo é realmente uma solução merecedora das nossas ambições, assim como para os problemas existenciais que o mundo enfrenta no Séc. XXI.

Quando era criança um dos meus grandes ídolos era o Bill Gates. Alguém que partindo da sua própria “genialidade” se tornou um dos homens mais ricos do mundo. E essa riqueza apelava ao meu espírito juvenil pela liberdade absoluta de todas as amarras de autoridade. Algum tempo depois essa ideia complicou-se um pouco. No filme ‘Pirates of Silicon Bay’ que explora a génese de dois grandes supra-sumos do empreendedorismo moderno, Bill Gates e Steve Jobs, percebemos a realidade mais mundana que se esconde por trás do mito do grande inventor.

No que toca a Bill Gates, o passe de mágica que lhe permitiu criar a Microsoft, não foi uma grande habilidade técnica de programação informática mas sim de negócio. Através do licenciamento de um sistema operativo já existente, o DOS, (sistema este uma cópia, e certos argumentam, plágio, de um outro SO, o CP/M), Gates faz uma parceria com a IBM que o catapulta para a estratosfera do sucesso. Até hoje, múltiplos processos entre os vários intervenientes continuam a ser digladiados em tribunal. O momento fulcral em que Bill Gates se torna o Bill Gates, não é o que poderia ser imaginado como um momento pivô de criatividade e brilhantismo técnico de um programador virtuoso, mas sim um vislumbre de negócio entre diferentes companhias e produtos já existentes. Assim como um aproveitamento duvidoso das leis de propriedade intelectual, ainda incipientes na época, e ainda hoje difíceis de aferir. Daí o epíteto ‘Piratas’ no título do filme. Bill Gates é afinal mais Jack Sparrow do que Nikolas Tesla.

A menção de Tesla lembra uma mais recente adição ao panteão dos deuses do empreendedorismo, Elon Musk. Nos meus tempos no curso de engenharia informática, lembro-me de discutir com colegas meus a crescente crise ambiental e a sua dimensão, assustadora e existencial para o futuro do planeta. Uma das respostas deixou-me surpreendido, não tanto por nunca a ter lido ou ouvido, mas por ser um colega próximo a dizê-lo: “No final do dia, não podemos fazer nada, terá que ser alguém com recursos, como um Elon Musk a arranjar uma solução… olha ele está a trabalhar em chegar a Marte!”. A ideia da raça humana deixar uma terra arruinada para trás, enquanto terraforma um novo planeta à sua imagem para, supõe-se, eventualmente destruí-lo de novo através da extração desmesurada dos seus recursos naturais, é para mim algo sombria. O ser humano deixa de ser a luz da razão num universo escuro, para se transformar mais em algo como uma praga espacial devoradora de mundos.

E não só de mundos, mas também de si próprio. O Steve Jobs tinha a fama ou infâmia de levar os seus trabalhadores às lágrimas com o seu estilo de gestão. Por outro lado, é curioso observar cada vez mais gigantes tecnológicos a fazerem o outsourcing dos seus serviços para a Índia, Ucrânia e semelhantes países em vias de desenvolvimento. É curioso ademais notar, que cerca de 50% dos trabalhadores Indianos são considerados ‘trabalhadores independentes’, sendo assim todos, em teoria, empreendedores também.

Apesar do nome, é sobejamente sabido que dentro da tenda dos trabalhadores independentes há espaço para muitos trabalhadores talvez dependentes, em que esse termo é talvez uma arma, usada como uma cenoura na vara com que o empreendedor-mor alicia os seus trabalhadores, com o talvez de uma posição regularizada, com os devidos direitos e benefícios do trabalho assalariado.

O mais irónico de todo o foco institucional no empreendedorismo, é que funciona apenas como retórica, visto que o investimento de risco existente especialmente em Portugal é parquíssimo e geralmente distribuído por uns poucos “compadres” do costume. Como a analogia da cenoura e do pau, em que uma vara com uma cenoura pendurada é posta à frente do focinho dum burro por quem o monta, o empreendedorismo é uma fábula utilizada para aliciar um jovem trabalhador a aceitar condições laborais piores do que as que os seus pais tiveram. Aliciado a galopar sob a capa da libertação do trabalhador, das amarras do supostamente entediante trabalho tradicional de escritório, o resultado final é geralmente a falência para a vasta maioria das startups ou o trabalho precário e desprotegido. Com este passo de mágica, a falta estrutural de boas práticas de gestão da camada empresarial portuguesa passa a ser um problema pessoal de cada membro do crescente exército de trabalhadores independentes.

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