Aproximando-se cada vez mais uma nova eleição legislativa portuguesa, é esperado que cada cidadão e cidadã saia de casa no domingo e deposite o seu voto no partido que sente que o/a irá representar melhor na Assembleia da República. Pelo menos é isto o que aconteceria num Estado que não tivesse um sistema eleitoral pouco democrático, desenhado de modo a garantir que os dois maiores partidos portugueses mantenham institucionalmente a sua posição.
O sistema eleitoral português é, surpreendentemente, motivo de pouca discussão na sociedade civil. Para além de um respeitável trabalho académico e de pequenas linhas em programas eleitorais, não vemos uma discussão séria dos nossos representantes sobre como garantir uma distribuição de mandatos mais justa. Mas comecemos então. Qual é o problema do nosso sistema?
Essencialmente, quando nos referimos à injustiça do sistema, o famoso método de Hondt é o suspeito inicial. Não acredito que a raiz do problema esteja aqui. Uma alteração para o método de Sainte-Laguë, utilizado em países como Alemanha, Noruega ou Suécia, não resolveria o principal problema do sistema. Ao recriar as últimas Eleições Legislativas, de 2019, com este método, vemos uma queda de deputados do PS (108 deputados para 97) e PSD (79 para 75), com um reforço do BE (19 para 22), CDU (12 para 16), CDS-PP (5 para 8), PAN (4 para 7), IL (1 para 2) e a inclusão do Aliança, com 1 deputado (Chega e Livre mantêm). De facto, há uma maior força dos “partidos pequenos”, mas a alteração do sistema eleitoral não vem a propósito de uma vendetta contra os grandes. Com a alteração do método, o PS continua com uma representação parlamentar de 42% e apenas 36% dos votos. O PSD de 32% com 28% dos votos, algo que até se pode argumentar como positivo, dado que um sistema eleitoral tem que garantir governabilidade. Uma reforma não iria visar o equilíbrio absoluto de representação. O principal objetivo de uma reforma é acabar com o problema da supressão de voto e distância entre eleitor e eleito. O problema está nos círculos eleitorais.
A questão da supressão eleitoral é a de maior preocupação. Uma pessoa que viva em Benavente, distrito de Santarém, vê o seu voto muito mais constrangido do que uma pessoa que viva no Carregado, distrito de Lisboa. O círculo de Santarém só elege 9 deputados, enquanto Lisboa elege 48. Por uns míseros 20 km um/a cidadã/o deixa de poder votar num partido pequeno e esperar eleger. Portugal não exige cláusulas de barreira institucionais, mas temos uma de facto. Mesmo assim, a pessoa de Benavente tem o privilégio de ainda poder esperar eleger alguém de um “partido médio”. Ao viver no distrito de Portalegre um/a cidadã/o depara-se com três hipóteses no boletim de voto, PS, PSD ou lixo. A população portuguesa que vive no interior sabe que quando chega ao momento eleitoral, o seu único propósito é ajudar a eleger alguém do partido do eixo da governação que desgoste menos.
Perguntamo-nos nós agora, como é que podemos verificar se há mesmo uma supressão do voto? O método é surpreendentemente simples: comparemos com as Eleições Europeias. A distribuição dos nossos 21 mandatos para o Parlamento Europeu é feita, também pelo método de Hondt, mas com um único círculo, Portugal. Se formos comparar as votações dos oito distritos portugueses com menor representação nas Legislativas (Portalegre, Beja, Bragança, Évora, Guarda, Castelo Branco, Açores e Vila Real) nas Europeias de 2019 e Legislativas do mesmo ano, vemos que a população compreende quando precisa de votar taticamente e quando não precisa. Nestes oito, o distrito em que a votação conjunta dos dois grandes partidos sofreu menos foi em Vila Real, onde, mesmo assim, passou de 70% nas Europeias para 76% nas Legislativas (+6%). Em Beja, por exemplo, o caso mais extremo, passou de 45% para 54% (+9%). No total, somados todos os círculos, vemos uma enorme quantidade de votos cujo eleitorado sente que, quando não restringido pela sua morada, pode votar mais conscientemente.
Então põe-se uma questão, para quê ter círculos distritais? Não faz sentido por quatro grandes motivos. 1) a já demonstrada supressão do voto, 2) quando eleito, o mandato é nacional, sendo que o representante não deve agir de acordo com a sua origem geográfica, 3) não representam necessariamente diversidade local portuguesa. É prática comum políticos portugueses apresentarem-se por diferentes círculos quando é eleitoralmente conveniente. Dos nossos últimos cinco primeiros-ministros, quatro apresentaram-se por diferentes círculos em diferentes momentos da sua carreira, e 4) os distritos em si não representam corretamente as diferenças regionais de Portugal. Uma pessoa de Almada, da Área Metropolitana de Lisboa, partilha um círculo distrital com uma pessoa de Sines, do Alentejo Litoral. Temos o privilégio de viver num país sem movimentos independentistas e com uma cultura relativamente homogénea de uma ponta a outra, declarar que é preciso diversidade regional e depois criar instrumentos geográficos que não a refletem, constrangido o voto, é algo prejudicial para a democracia portuguesa.
O segundo grande problema do sistema eleitoral português: a falta de proximidade entre eleitores e eleitos. Mesmo intervenientes que têm interesse em manter o atual método de Hondt com círculos eleitorais reconhecem que é necessário enfrentar esta questão. A hipótese de criar um sistema de vários círculos uninominais, onde elegemos o “nosso” representante, estilo anglo-americano é absurda. Como vemos nestes dois casos, só reforçaria um forte bipartidarismo, onde os partidos com recursos os utilizam para incentivar o voto tático.
A alteração da Constituição em 1997 pisca o olho à utilização de um sistema semelhante ao alemão. Cada académico tem a sua variação deste sistema, com mecanismos e contra-mecanismos para garantir não só o pluralismo mas a governabilidade. Essencialmente, significaria dividir os mandatos em dois, não necessariamente 115/115 mas, possivelmente, com outras proporções, 130/100, 150/80 etc… e ter os famosos “dois votos à alemã”. Um voto em que se nomeia um partido e outro em que se nomeia uma pessoa numa corrida local. Uma lista nacional com uma cláusula de barreira e, paralelamente, mandatos uninominais exclusivos às listas (de modo a incentivar notáveis ou membros de partidos menores) iriam não só garantir uma melhor pluralidade eleitoral, um maior reconhecimento dos eleitos mas também a possibilidade de governos que, necessitando de uma coligação, não precisam de incluir um número desastroso de participantes no exercício governativo. Uma maior pluralidade representaria uma maior cultura democrática não só entre a população e a classe política mas em relação aos partidos entre si.
Terminando, que alterações propõem os partidos ao nosso sistema eleitoral? Após analisar os programas para as Legislativas 2022 dos nove partidos/coligações que elegeram em 2019, vemos o seguinte: um Chega cuja proposta de reduzir o número de mandatos para 100 é tão ridiculamente demagógica que deve ser mencionada só por efeito cómico e pode ser excluída à partida; um PS que não se pronuncia sobre o assunto; um PSD que propõe a expansão de círculos eleitorais e limitação destes entre 3 e 9 mandatos, que só iria beneficiá-lo, dado que limitaria a representação de partidos menores em áreas como Lisboa e Porto e permitiria representação ao PSD em círculos que tradicionalmente tem dificuldades – no Alentejo) e reduzir o número de mandatos para 215 (porquê, é difícil compreender); e tanto um BE como uma CDU que não querem tocar no assunto. Os partidos menores têm propostas díspares mas curiosas, o PAN e a IL com modelos que devem ser tomadas em consideração, mas longe de ideais, e o Livre e CDS com propostas interessantes mas profundamente subdesenvolvidas em detalhes.
É necessário que seja a população a levar esta questão! É necessário que divulguemos este problema para dar voz política àqueles que não a têm eleitoralmente. Esta parece ser uma questão pequena mas tem profundas ramificações na política nacional. Já foi estudada, temos bibliografia e soluções. Só temos de obrigar o sistema político a fazê-lo!
Carpe DiEM
Fonte da fotografia: guardmyvote.com
Max Falcão é membro do coletivo de Lisboa do DiEM25.
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