Nas últimas semanas, e devido às circunstâncias excepcionais que vivemos, foi exposta a situação precária e vergonhosa dos trabalhadores imigrantes no Alentejo, com particular foco nas condições habitacionais a que estão sujeitos. Apesar da “surpresa” cínica e teatral com que a comunicação social e a classe politica portuguesa têm reagido ao grau de degradação evidenciado, foi referido, aqui e ali, que as condições de exploração laboral de imigrantes, assim como a precariedade habitacional associada, não são de todo uma novidade em Portugal. Simplesmente nunca se tinham tornado notícia de “primeira página” e o motivo é evidente. A exploração de imigrantes encontra-se enraizada em diversos sectores da economia portuguesa e não se limita a Odemira, nem ao Alentejo, nem sequer aos “trabalhadores sazonais”. É uma realidade presente em todo o território português, em zonas rurais e urbanas sem excepção.
Hoje, os membros do coletivo de Setúbal do DiEM25 denunciam um destes casos, o da família Pereira, que têm acompanhado e procurado apoiar em conjunto com o movimento Habita, desde o início deste ano.
A família Pereira, constituída atualmente pelo sr. Pedro (na foto de capa), imigrante da Guiné-Bissau, e os seus dois filhos, habita há cerca de 30 anos numa moradia na Trafaria, no concelho de Almada. Entraram na casa em 1991 e o senhor Pedro pagava a renda em mão e nunca lhe foram dados recibos das rendas. Após o falecimento da senhoria em 2012, nunca mais teve contacto com o proprietário da casa e desconhecia a quem se dirigir para pagar a renda. Desde esta altura, as condições do prédio sofreram uma degradação rápida e o sr. Pedro e os seus filhos vivem em condições completamente indignas. Chove bastante dentro de casa e a família não tem o conforto e a segurança mínimos a que todos temos direito. Por outro lado, o sr. Pedro recebe apenas o salário mínimo nacional, que é a única fonte de rendimentos do agregado, suportando os dois filhos que se encontram a frequentar o ensino secundário. Não tem assim qualquer possibilidade de pagar os valores de renda que o mercado imobiliário impõe no concelho de Almada.
Neste caso, torna-se clara a ligação entre diferentes formas de precariedade, assim como a conivência entre Estado e setor privado. Ao valor miserável que constitui o salário mínimo nacional português, junta-se a especulação imobiliária e falta de investimento na habitação social pública, deixando para trás pessoas que trabalham todos os dias como o sr. Pedro, na ansiedade e no desespero, sem qualquer solução à vista.
Foto que evidencia a área mais degradada da casa, onde a chuva entra com frequência.
A Habita pediu-nos ajuda com este caso no início do ano, visto que se encontrava na nossa área de atuação e que poderíamos acompanhá-lo de perto. Desde essa altura que temos ajudado o sr. Pedro com a sua candidatura a uma habitação social junto da câmara municipal de Almada de habitação e deparámo-nos com todas as barreiras burocráticas que este pedidos apresentam, especialmente para imigrantes e cidadãos de baixa escolaridade, que constituem a grande maioria das candidaturas. A comunicação com os organismos da Câmara é confusa e com frequência são pedidos documentos que os próprios funcionários desconhecem como obter.
Quando lançámos o alerta sobre esta situação urgente, fizemo-lo para diversos organismos da Câmara Municipal de Almada e os seus serviços sociais, recebendo duas semanas depois uma curta resposta, indicando-nos o número de um processo e um contacto que não nos forneceu qualquer informação.
A situação desta família era já suficientemente má, mas viria ainda a piorar.
No dia 25 de Março, um dos filhos do sr. Pedro, Fábio Pereira, foi abordado enquanto se encontrava sozinho em casa por dois desconhecidos, sendo que um deles se identificou como sendo advogado dos atuais proprietários do imóvel. Após alguma pesquisa facultada pela Habita, descobrimos que a casa é agora propriedade de um fundo de investimento imobiliário de Sesimbra. Comunicaram ao Fábio que a família teria de abandonar o imóvel, pois este seria demolido em breve. Não foi apresentada qualquer ordem judicial de despejo, não possibilitando assim que esta família faça valer os seus direitos legais em relação ao imóvel, devido à sua longa estadia no mesmo. Esta ordem de despejo poderia também facilitar o seu acesso a uma habitação social, algo que parece não preocupar minimamente os proprietários, interessados apenas no lucro fácil.
Não tendo outro lugar para onde ir, o sr. Pedro e os seus filhos mantêm-se na casa, sendo que na passada quinta-feira foi cortado o fornecimento de água, como forma clara de forçar a sua saída, sem passar pelos mecanismos legais que poderiam conferir algum tipo de proteção a esta família. Lembramos que o Orçamento de Estado de 2021 é claro ao afirmar que “não é permitida a suspensão” de serviços essenciais como o fornecimento de água, devido às fortes perdas de rendimentos que as famílias têm sofrido, assim como a necessidade maior de garantir à população uma higiene apropriada, fundamental no controlo da pandemia. Após novo alerta para diversos órgãos da CM de Almada, recebemos um contacto do SMAS Almada, o serviço municipal responsável pelo fornecimento de água, informando-nos que estariam a “averiguar o caso”. Resta-nos saber quantos mais dias terá esta família de esperar, para voltar a poder tomar um banho na sua habitação.
Esta família é apenas uma, entre cerca de 26000 que foram identificadas no Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional de 2018. É quase certo que este número será superior, quando temos em conta a situação irregular de muitos imigrantes que vivem em Portugal. Recordamos que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras chega a levar mais de dois anos para atribuir um direito de residência a pessoas que trabalham, pagam impostos e descontam para a segurança social portuguesa. Tal como consta nas promessas do atual Plano de Recuperação e Resiliência, o governo prometeu em 2018 verbas avultadas para os anos seguintes, dedicadas à disponibilização de habitações sociais para resolver este flagelo. Mas em 2020 apenas 8% destas verbas haviam sido realmente executadas. Um caso claro de falta de “vontade política” e que nos permite prever com quanto podemos contar, em termos da execução prática, em relação aos cerca de 1400 milhões de investimento prometidos no PRR para esta área.
O coletivo de Setúbal do DiEM25 apela a que nos ajudem a denunciar este e outros casos semelhantes no distrito, mantendo a pressão sobre a Câmara Municipal de Almada para encontrar uma solução para esta família. Para além de viverem há anos numa habitação sem condições básicas, vêm-se agora na enorme ansiedade e insegurança de não saber por quanto tempo terão um teto, mesmo que degradado, debaixo do qual possam dormir, ou mesmo se poderão voltar a ter água canalizada em casa, uma circunstância que nos parece desumana e ilegal. Num país com centenas de milhares de casas desocupadas, é algo que não deveria acontecer.
Se estás ou conheces alguém numa situação semelhante ou noutro tipo de precariedade na habitação, podes contactar-nos através do nosso email: setubal1dsc@pt.diem25.org. Tentaremos denunciar e apoiar a tua situação.
David Silva é um membro do coletivo de Setúbal do DiEM25.
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