IVG e a luta para garantir um direito fundamental – uma maternidade quando, como e SE quisermos

Uma lei aprovada em referendo há 17 anos é desrespeitada diariamente sem qualquer pudor. O resultado? O que poderia ser um procedimento médico ágil e sem mazelas – sobretudo, psicológicas – torna-se uma corrida contra o tempo e contra o patriarcado. Antes que o cenário se torne mais grave, há que informar, alertar, abrir a conversa, falar na primeira pessoa e excluir uma palavra culpa do nosso vocabulário.

Ana Patrícia Cardoso, fundadora Associação Escolha

– Boa tarde, é do Hospital das Caldas da Rainha?

– Sim.

– Gostaria de marcar uma consulta para proceder à interrupção voluntária da gravidez (IVG).

– Ah não, aqui não fazemos.

– Desculpe? Mas estou a ligar para um hospital público, correto?

– Sim, mas aqui não se faz. Vá para um centro de saúde que lá reencaminham.

(Desliga abruptamente e vai por conta própria à Clínica dos Arcos.)

Balcão da Maternidade Alfredo da Costa.

– Boa tarde, gostaria de marcar uma consulta para IVG.

– Aqui só fazemos a residentes de Lisboa.

– Mas eu moro no distrito.

– Não, não, tem que morar aqui e ter comprovativo.

– E agora? E agora o que faço?

– Agora vá procurar a outro sítio.

(Sai a chorar da MAC, liga à Escolha. Marca no Hospital Santa Maria e opta pelo ato cirúrgico.)

Castelo Branco

– Preciso de ajuda, aqui não fazem, apesar de no site do SNS dizer que sim. O que faço? Estou a tentar ligar para Covilhã, não sabem ajudar ou dizem que tenho de ligar só naquele horário específico que são dois dias por semana, durante uma hora.

– Vamos ajudar e procurar alternativas para que consiga fazer dentro do prazo. Mas terá de se deslocar.

(Consegue consulta na Figueira da Foz, distrito de Coimbra, a duas horas de distância.)

O texto poderia ser inteiramente constituído por casos, daqueles que acontecem todos os dias e ninguém suspeita. A Associação Escolha, primeira no apoio exclusivo à IVG, completa seis meses com a profunda convicção de que é necessário mudar o discurso corrente em torno de estatísticas e números e focar no que importa sem medo – falar na primeira pessoa sobre as lutas e restrições que enfrentamos para levar avante um direito. 17 anos de lei é pouco tempo, entenda-se. As mesmas pessoas que lutaram pelo ‘Não’ ocupam cargos de poder – ao mais alto nível da nação – as direções de hospitais mantêm-se as mesmas, o lobby católico e profissionais de saúde inunda as diretrizes dos estabelecimentos públicos.

O aborto é crime em Portugal

Esta expressão é sempre seguida de uma pergunta: “como pode ser se eu votei?”, “mas eu conheço quem fez e não foi presa, tens a certeza?”. A lei do aborto consta do código penal, algo altamente discriminatório. Passemos a legislação a pente fino: A lei nº 16/2007 define a exclusão da ilicitude (crime) em circunstâncias concretas e restritivas da mulher (usamos o género representado na lei, sabendo que o correto seria pessoa gestante. Caso estas diretrizes não sejam cumpridos, resultam em crime de aborto. O Artigo 142.º nº1 al. e) esclarece que “não é punível a interrupção da gravidez efetuada por médico, ou sob a sua direção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando (…) For realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez”. Diz ainda que “a verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez é certificada em atestado médico, escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direção, a interrupção é realizada, sem prejuízo do disposto no número seguinte”. É também obrigatório que a mulher tenha um período de reflexão de três dias antes do procedimento ser iniciado. Em França, Luxemburgo, Suíça ou em Espanha uma pessoa jamais se senta no banco dos réus por questões relacionadas com aborto porque este é discriminalizado. É muito importante que se entenda a diferença. Em 2022, o ministério público avançou que foram instaurados 15 inquéritos por eventual pratica de crime de aborto. Ou seja, é por medo de enfrentar as consequências legais da sua escolha que muitas mulheres ainda recorrem a outros países para fazer uma IVG, algo que se tornou uma constante nos anos anteriores à lei mas que agora não fazem sentido algum. Segundo uma investigação do Expresso, mais de 500 mulheres recorreram a duas clínicas na fronteira (Vigo e Badajoz) para interromper a gestação porque passaram as 10 semanas (uma das maiores restrições na lei). Estamos a falar de um número muito alto para apenas um ano e apenas duas clínicas. Imaginemos o número real.

Outra das restrições que não faz qualquer sentido é o facto de serem necessários dois médicos: um para consulta prévia e outro para o procedimento. Em que outro tratamento médico (excluindo a eutanásia) se exige por lei que andemos a saltitar de mãos? Esta questão origina verdadeiros vazios territoriais, porque se houver apenas um médico que se proponha a fazer IVG, o hospital não pode garantir. Tomemos o caso dos Açores em que as pessoas têm de apanhar um avião para vir fazer ao continente. E este cenário leva-nos à grande questão que, a ser discutida com seriedade, mudaria o cenário para as pessoas gestantes: a objeção de consciência.

O que estás a objetar? A minha liberdade.

O artigo 6º da lei prevê o seguinte: “É assegurado aos médicos e demais profissionais de saúde o direito à objeção de consciência relativamente a quaisquer actos respeitantes à interrupção voluntária da gravidez. Os médicos ou demais profissionais de saúde que invoquem a objeção de consciência relativamente a qualquer dos actos respeitantes à interrupção voluntária da gravidez não podem participar na consulta prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal ou no acompanhamento das mulheres grávidas a que haja lugar durante o período de reflexão. Uma vez invocada a objeção de consciência, a mesma produz necessariamente efeitos independentemente da natureza dos estabelecimentos de saúde em que o objetor preste serviço. A objeção de consciência é manifestada em documento assinado pelo objetor, o qual deve ser apresentado, conforme os casos, ao diretor clínico ou ao diretor de enfermagem de todos os estabelecimentos de saúde onde o objetor preste serviço e em que se pratique interrupção voluntária da gravidez.”

Vamos da lei à prática. Quando, por lei, se afirma que qualquer profissional de saúde pode ser objetor de consciência, o que acontece no dia a dia é que enfermeiros se negam a tirar sangue a pessoas que vão fazer IVGs, anestesistas recusam-se, técnicos de saúde e, claro, médicos. Conseguimos imaginar a violência de alguém que entra num hospital a pensar que é um lugar seguro e é-lhe negado atendimento por uma decisão pessoal e legal que em nada diz respeito ao profissional? Talvez nos seja difícil de imaginar mas acontece de forma recorrente e com requintes de julgamentos, brutidão, desrespeito e ofensas. Uma vez que não está estipulado que o estabelecimento público pode ter objetores de consciência, mas é obrigado a garantir o procedimento médico, o que acontece é aquilo que os casos ilustram: unidades de saúde declaram-se objetores como um todo – algo que é ilegal mas que resulta de uma brecha na lei. De acordo com a mesma reportagem, um terço dos hospitais reconhecidos não faz e dos 55 centros de saúde abordados, nenhum faz. Estamos a falar aqui de uma violência de género atroz. Outro ponto: a entrega do documento assinado. Este assunto não é levado a sério e o que existe é uma objeção de consciência seletiva que pode levar um médico a dissuadir uma pessoa que está a gestar, valendo-se de um momento mais frágil ou de julgamentos da vida pessoal da/o paciente. Acontece bastante. “Já tem filhos, pode ter mais um”; “então, mas com essa idade já tem a vida feita para essa criança”, frases repetidas a portas fechadas de consultórios que deveriam ser punidas com queixa formal. Os projetos de lei em cima da mesa não são específicos o suficiente nesta matéria. A regulamentação da objeção de consciência tem de passar por uma comissão independente (isto é, que não sirva interesses políticos, lobbys e que não seja formada por profissionais de saúde). A ausência do procedimento num determinado local deveria ter coimas pesadas e repercussões para as direções, isto é, têm de ser obrigados a ter uma equipa completa não objetora. Os médicos que se declarem objetores de consciência têm de cumprir esse posicionamento. Acreditamos que isto possa acontecer de forma rápida? Claro que não. Esta é a mudança mais profunda e que mexe com poderes instituídos há muitos anos que servem o poder católico, machismo e estigma em torno da IVG. Falemos deste último.

Vergonha, eu? Jamais

Dados importantes que a Escolha procura reforçar sempre que apoia uma pessoa que quer interromper uma gestação:

– Ninguém tem de dizer porque quer fazer uma IVG. É necessário preencher um formulário com questões práticas mas a motivação da escolha é absolutamente pessoal. Não se deixem levar pela conversa dos profissionais de saúde que gostam de emitir juízos de valor. “Quero fazer uma IVG”, responder às perguntas e escolher o método. É apenas isso que têm de fazer.

– Podem fazer em qualquer estabelecimento de saúde do país. Artigo 3º. da Portaria n.º 741-A/2007: “A mulher pode livremente escolher o estabelecimento de saúde oficial onde deseja interromper a gravidez, dentro dos condicionamentos da rede de referenciação aplicável.” Não caiam na conversa da área de residência, é um entrave falso.

– Muitos estabelecimentos são objetores do ato cirúrgico, dando apenas os comprimidos. A lei diz que a mulher pode escolher mas nem sempre é assim. Informem-se sobre este ponto se, por alguma razão, queiram realmente fazer o ato cirúrgico.

– Sempre que forem vítimas de ofensa, apresentem queixa. É absolutamente necessário que as vítimas entendam que têm voz.

– Não são obrigadas ou obrigados a ver a ecografia numa consulta prévia de IVG. Se estão a mostrar-vos, peçam para não o fazerem, não têm mesmo de ver. Este é outro método de persuasão cruel.

– Não existe culpa em priorizar a vida da pessoa que gesta e não aquela que ainda não existe. Esta palavra não faz parte do vocabulário do nosso futuro. A maternidade consciente, aquela que defendemos, é uma escolha baseada em ponderação, análise concreta da vida e, acima de tudo, de vontade em ser mãe naquele momento. A IVG não acontece apenas em situações limite, acontece mais regularmente em relações estáveis, famílias com filhos, pessoas que tomam precauções e estas falham (sim, falham). A IVG acontece quando alguém decide que aquele não é o momento para trazer uma pessoa ao mundo. Uma gestação não é um bebé, é um ser humano para toda a vida, é uma decisão demasiado séria para não ser discutida e avaliada a fundo.

– O lugar da mulher não é apenas na maternidade. Escolher uma IVG não é renegar algo que nos é natural. Isso são crenças geradas por homens para nos condicionar a um plano secundário sobrecarregado, focado apenas nos outros e não em si como personagem principal da sua vida. Essa falácia tem de morrer. E temos de ser nós a matá-la.

– A Escolha encara a IVG como um ato de liberdade, de amor-próprio, um procedimento médico legal que tem de ser executado com respeito. Não é fácil, não deve ser tomado como algo leve, merece ser vivido em paz. Queremos que esta e as próximas gerações entendam que o cenário é muito mau atualmente – como relatado acima – e que precisamos de todas e todos para acabar com esta violação aos nossos direitos fundamentais. Viemos para ficar.

 

 

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