Neoliberalismo e Extrema-Direita: A Aliança do Descontentamento

O alavancar do Chega não é apenas fruto de um Portugal intolerante, racista e xenófobo, é, sobretudo, resultado de medidas económicas neoliberais que favorecem uns em detrimento de outros

Se a mensagem vociferada pelos liberais através da sociedade do consumo e da hiperprodutividade reproduz o objetivismo de Ayn Rand, que no fundo, é uma ode ao individualismo em detrimento dos nossos princípios e valores, é apenas expectável que a nossa natureza assuma esses ideais. Mas se o neoliberalismo e o capitalismo representam o triunfo do individualismo, e da vontade cínica em lucrar, o fascismo e outras formas de conservadorismo autoritário e repressivo anunciam a derrota das suas promessas ao canibalizar as ilusões do povo. Por outras palavras, o neoliberalismo e capitalismo munem a extrema-direita das armas de que esta precisa para levar a cabo a revolução conservadora opressiva.

A luta de classes é frequentemente atirada para o espaço de debate público pelos partidos do sistema como algo inevitável e inerentemente humano, mas não tem de o ser. Quando muito, este discurso funciona como um sedativo necessário para adormecer a inquietação incessante dos mais necessitados. O sentimento de revolta e de zanga está muitas vezes associado a emoções e sentimentos negativos, mas, neste caso, é a única arma que o povo tem para fazer frente a elites com recursos virtualmente infindáveis.

E esta zanga já lá está, em nós, todos os dias, a queimar e a espicaçar, a alimentar uma paranoia constante que tem, dizem eles, como única catarse o lucro, o estatuto, o finalmente ver as promessas cumpridas, em nos tornarmos ricos. Este é o cume do ilusionismo neoliberal. Servindo-se deste sentimento de superioridade de classe, de estatuto, até de estética, como disse recentemente Rita Matias, braço-direito de André Ventura, quando copiou o discurso de Javier Milei, presidente argentino ultraliberal e assumidamente anarcocapitalista, a extrema-direita canaliza toda a indignação popular contra tudo e todos exceto as políticas neoliberais tanto do PSD como do PS. Não é de admirar que Ventura tenha visto seu partido crescer de 12 deputados para 50 após as eleições de 10 de março.

E este alavancar do Chega não é apenas fruto de um Portugal intolerante, racista e xenófobo, é, sobretudo, resultado de medidas económicas neoliberais que favorecem uns em detrimento de outros. Os salários baixos, os escalões de IRS insuficientes, a não taxação das grandes fortunas e heranças, o progressivo desinvestimento no SNS, reforçado pelos pensos rápidos das PPP, entre outros, foi a avalanche de descontentamento que derrubou a legitimidade tanto do PS como do PSD para governar. Como consequência das políticas dos partidos do sistema, e como uma qualquer criatura necrófaga, a extrema-direita surge para se deleitar nas ossadas dos sonhos frustrados do país.

Desde o 25 de Abril que Portugal é vítima de uma autofagia política deliberada. A falta de vontade política para com o setor da cultura e educação são apenas mais dois sintomas do cinismo neoliberal. Estes últimos são setores fundamentais para qualquer democracia saudável. Só com a prática de uma cidadania informada e ativa nos conseguimos munir das armas de que precisamos para nos defendermos da retórica liberal e de extrema-direita.

E estejamos cientes de que o crescimento económico não é salvação nenhuma se a distribuição dessa riqueza for desproporcional, como tem sido. Lembremo-nos do crescimento durante os anos 60, durante o Estado Novo, em que era raro o reinvestimento de capital na esfera pública. Aliás, os salários baixos eram de certa forma estratégicos de forma a atrair investimento estrangeiro, nomeadamente estadunidense. Esta estratégia fomentou a desigualdade salarial e acelerou a imigração em massa, sobretudo para França. “Nos anos 70, Portugal continua a ser o país mais pobre da Europa Ocidental. A imigração atinge níveis muito elevados, superiores a 100 mil partidas anuais”, diz-nos Yves Léonard, historiador francês especialista na História de Portugal.

Curiosamente, entre 1965 e 1973, época de enorme afluência turística no país, cerca de um milhão em 65 e quatro milhões em 73, a inflação bate recordes em Portugal devido ao turismo e à intensificação da emigração, chegando aos 20% em 1973. Notem-se os padrões com o presente. Este tipo de crescimento económico não significa uma distribuição igualitária da riqueza, é antes sinónimo de uma forte concentração de riqueza tendo como base uma precariedade crónica.

Mas existem soluções. Há que começar a fortalecer o Estado Social, a cultura, a ciência, o conhecimento, o espírito de cidadania, o pensamento crítico, e repensar as leis laborais, a forma como trabalhamos e para quem realmente trabalhamos. Tudo isto só é possível com a rejeição das políticas neoliberais e a implementação de um socialismo real, não um baseado em frases feitas como o PS tem feito ao longo dos anos. É urgente uma convergência à esquerda para que se possa recuperar a dignidade do povo e do país.


This article was originally published on Esquerda and has been re-published with permission

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