Mais um ciclo eleitoral que se aproxima, um pouco a contra gosto da grande maioria da opinião reinante, que o diz desnecessário, fruto de cálculos políticos cínicos que não correspondem às aspirações da nação. Curiosamente, estes lamentos foram subitamente substituídos por um frenesim mediático em torno dos debates políticos entre os vários líderes e candidatos partidários. A extrema-direita e o reacionarismo ressurgidos, foram o catalisador que o actual regime precisou para animar as hostes eleitorais das suas preocupações mais presentes, como o estado precário do país, na saúde, na habitação, na economia e em tantas outras áreas.
As eleições são assim enquadradas num concurso de personalidades e adivinhação de motivações íntimas. Os métodos de decisão tornam-se afinidades empáticas e vagas lealdades clubístico-partidárias. Os mecanismos significativos de domínio, exploração e monopólio, a crescente desigualdade e a perda de soberania do cidadão comum passam necessariamente para segundo plano.
Nunca é demais relembrar, o quão prejudicial é a obsessão que os meios de comunicação têm em personalizar profundamente as campanhas, desfazendo-se numa panóplia de comentadores e comentários infindos e abraçando a gíria da arte marcial e da contenda bélica. Perpetuam desta forma a cultura tóxica e sebastianista dos ‘grandes homens’ e políticos, os únicos que detêm a chave da nossa prosperidade comum. Como disse Trump durante a sua campanha presidencial: “Apenas eu posso consertar o sistema”.
Dito isto, há ainda assim um tema que sobressai dos confrontos entre os vários líderes partidários, um tema muito proclamado pelos candidatos dos presumivelmente maiores partidos, a sua auto-proclamada moderação, ou mais especificamente, a primazia política do pragmatismo.
A cautela e o pragmatismo são ferramentas essenciais na política, tanto mais quanto maior for a responsabilidade do cargo que se exerce. Mas tendem a ser elevadas a princípios basilares pelos partidos sociais democratas modernos. E tida a moderação como um princípio e não como uma ferramenta, observa-se que esta se torna num obstáculo aos objectivos pretendidos.
Especulando um pouco, alguém poderia pensar que os fracos resultados obtidos pela política habitacional dos recentes governos PS, que não conseguiram de forma alguma travar o estonteante crescimento do custo da habitação, e ignoraram mesmo os avisos dos parceiros parlamentares, não serão necessariamente produzidas por um cálculo cínico e propagandista. Foram feitas promessas sem a intenção de as cumprir, não por motivações ideológicas ou outras mais nefastas, mas sim de forma utilitária, perante a enormidade da tarefa que recairá nos governantes que tentem enfrentar o hegemónico “lobby” imobiliário.
Tanto lá fora como domesticamente, a hidra imobiliária e o seu ataque especulativo fazem até o mais corajoso dos políticos ficar de pé atrás. Vemos como o pragmatismo tem sido mal empregue pelos governantes que fazem dele a sua causa, com o falhanço em enfrentar este problema a minar os mais valorosos esforços em outras áreas. Basta entender como o brutal aumento do custo de vida, especialmente nas grandes zonas urbanas, foi bastante superior a qualquer ganho provindo do aumento do ordenado mínimo. Torna-se evidente a necessidade absoluta de enfrentar a oligarquia imobiliária para se poder colher os frutos de todo um programa político progressista. Visto que o polvo especulativo poluiu tudo à sua volta, dita o pragmatismo que o mesmo deve perecer para que qualquer outra política possa ser minimamente eficaz.
Nesta campanha, é também comum ouvir o argumento de que sem estabilidade política, se desperdiçará a oportunidade de uma geração, ficando impedida a gestão progressiva dos fundos europeus de recuperação da pandemia covid (PRR). Mas mesmo no melhor dos cenários para a execução desses fundos, não podemos esquecer que vivemos sobre a conhecida égide ética de ‘socialismo para os ricos e individualismo feroz para todos os outros’. Tendo em conta o historial dos ‘investimentos verdes’ em Portugal, qual é mesmo o melhor que podemos esperar? É de elogiar o facto de Portugal produzir uma maioria dos seus recursos energéticos através de energias renováveis. Mas a que custo? Tendo perdido centenas de milhões de lucros anuais através da alienação da REN e EDP do erário público. E incumbindo os portugueses da renda abundante e opaca das PPP’s aos mesmo oligarcas que observaram a implementação dos ‘fundos europeus’. Os processos de atribuição dos fundos dos PRR, mesmo a parte que toca aos ‘investimentos verdes’, continuarão capturados pela lógica oligárquica que gere em grande medida o sector da energia. Como as centenas de milhões que ficaram por pagar recentemente, devido a leis escritas a regra e esquadro pela nossa legislatura, de forma a conceder uma generosa borla fiscal de 110 milhões à EDP. Que certezas temos de que esse grande presente europeu não acabará numa conta bem superior no longo prazo, dados os resultados infames que obtivémos no passado com os negócios e PPP’s das energias, rodoviários entre outros?
Se estabilidade política significa continuar no caminho actual, sem grandes mudanças na forma como as mais valias produtivas são capturadas por uma estrutura oligárquica, deparamo-nos com um paradoxo, pois um caminho que acaba num beco sem saída não pode criar senão instabilidade.
A quarentena democrática não começou ontem.
É já da praxe que após cada acto eleitoral, sejam as primeiras declarações das figuras máximas institucionais da nação sobre a abstenção, ora mais optimistas sobre a saúde do espírito democrático nacional, ora mais pessimistas. Mas sabemos que ano após ano a tendência não é animadora. Continuamos com vastas camadas da população muito afastadas dos actos eleitorais, impedidas ou desinteressadas: os mais pobres, os mais e menos jovens e os descendentes de imigrantes. Um paradoxo a que ninguém parece querer dar resposta: porque será que os mais atingidos pelas iniquidades e opróbrio do sistema actual, são os que depositam menos esperança ou entusiasmo nos mecanismos de decisão da sociedade? É uma “feature” ou um “bug”?
Contra este pano de fundo, os 5 minutos de comentários penosos repetidos sempre mais ou menos da mesma maneira, sobre a saúde da democracia e a contínua impassividade dos actores políticos em relação a essa situação, ganham contornos perniciosos. Não serão precisamente os autores desses comentários quem preside, como classe política, ao lento degradar da democracia?
Nas próximas eleições, não é de todo irrelevante qual o candidato ou conjuntura de partidos partidária que vencerá. A força relativa dos diferentes partidos pode forçar coligações muito diferentes ao nível programático. Por outro lado, a possibilidade de não haver qualquer entendimento sustentável e a consequente necessidade de novas eleições, assomam-se cada vez mais como o elefante na sala que todos pretendem ignorar.
O mesmo acontece com outro fantasma que teima em não ser abordado de forma clara, mesmo tendo em conta que este é sem sombra de dúvida o maior constrangimento em qualquer horizonte de futuro do país: o actual consenso restritivo da elite europeia, a tão famigerada austeridade, o dogma regressivo que é expectável ver ressurgido com renovada intensidade nos tempos que se aproximam.
É por esse motivo que só um movimento de bases progressivo pan-europeu pode manter alguma clareza e ambição no meio da confusão deste labirinto eleitoral em que nos encontramos. Só um programa radical como o Green New Deal for Europe pode realmente ser apelidado de pragmático.
A fotografia captura o momento em que o Orçamento de Estado para 2022 foi rejeitado na Assembleia da República. Fonte: Wikimedia Commons.
Miguel Gomes é membro do coletivo de Setúbal do DiEM25.
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