Rendimento Básico Incondicional: uma visão crítica.

Quando pensamos numa política que envolva, através da taxação dos rendimentos do capital, a distribuição de um rendimento por todos, pensamos numa medida ligada às políticas emancipatórias da esquerda, ou às políticas conservadoras da direita?

A resposta será a primeira opção para a maioria das pessoas. Havendo ainda um debate constante à esquerda sobre a condicionalidade/universalidade e sobre o que constitui básico, deixarei essa discussão de parte por agora. Um dos méritos reconhecidos é algo advogado fortemente pela esquerda: a emancipação do dever do trabalho no sistema capitalista. Com isto viria o fim da mercantilização do trabalhador nos olhos do empresário, que passa a ser um agente livre e a não estar sujeito às suas condições no receio de ficar sem o seu sustento. Outro argumento a favor da medida toca no ponto da ineficácia dos atuais apoios sociais para pessoas em situação de desemprego. Perante a existência de um rendimento básico garantido, qualquer trabalhador não teria de recorrer à extensa burocracia da segurança social que a torna ineficaz e inacessível para responder a situações de vulnerabilidade imediatas. Por fim, teoriza-se que a adoção desta ideia poderia ser uma forte medida para a erradicação da pobreza. Garantindo um rendimento que permitisse adquirir o básico, satisfaziam-se as necessidades básicas.

Mas deve soar o alarme a qualquer progressista que esta medida, com resultados tão promissores, seja defendida por Elon Musk e Mark Zuckerberg. Será um raro caso em que bilionários se alinham com os interesses dos trabalhadores? A resposta é inequivocamente: não.

Dia 5 de Julho de 2017, após regressar de um fim de semana no Alasca com a sua esposa Priscilla, Mark Zuckerberg fez uma publicação no seu perfil de Facebook sobre os méritos do sistema do Alasca. Neste sistema, dadas as gigantes receitas do petróleo e as condições de vida adversas dos seus habitantes, o governo local distribui parte do dinheiro taxado às petrolíferas por cada cidadão, baseado nas suas receitas. No ano de 2022, o dividendo dado a cada pessoa foi de $3284. “Esta é uma abordagem inovadora para o rendimento básico em vários aspetos. Em primeiro lugar, é financiada por recursos naturais em vez de aumentar impostos. Em segundo lugar, advém de princípios conservadores de um governo mais reduzido, em vez de princípios progressistas de uma rede de segurança social mais ampla. Isso demonstra que o rendimento básico é uma ideia bipartidária” disse Mark Zuckerberg no seu texto. “Estes são apenas alguns exemplos que nos chamaram a atenção sobre como os programas sociais do Alasca poderiam inspirar melhorias em todo o país.”.

Para o fundador do Facebook, o RBI não é uma medida positiva por aumentar a rede de segurança social e com potencial de emancipar a população assalariada, mas sim uma parte fundamental de uma estratégia neoliberal de minimizar a intervenção governamental na economia. Outro grande tecnocrata, Elon Musk tem outros méritos a dar à ideia. Durante uma apresentação sobre inteligência artificial, Elon Musk prometia criar um robô capaz de substituir todo o esforço físico repetitivo nas suas fábricas da Tesla. “Essencialmente, no futuro, o trabalho físico será uma escolha”, disse Musk, acrescentando: “É por isso que acredito que a longo prazo será necessário um rendimento básico universal”. Perante a sua vontade de cortar custos com automação e prosseguir na sua trajetória de crescimento insustentável, Musk vê o possível descontentamento da população causado pelo desemprego como um possível travão. Assim, o RBI não é uma proteção para os trabalhadores desempregados, mas sim uma tática de negociação que dá uma carta-branca à expansão sem limites da sua empresa e à continuação do seu modo de produção com vários impactos sociais e ambientais.

Não é por isso de estranhar o apoio que bilionários dão à ideia. A lógica de apoiantes do RBI à direita é semelhante, a mesma da desburocratização e diminuição do papel do estado. Com a ajuda do RBI não necessitam do estado social, não precisam de um subsídio de desemprego, não precisam de um rendimento social de inserção, nem de subsídios por invalidez e nem precisam de reforma. Se for o estado a garantir esse básico de sobrevivência, eventualmente os capitalistas farão o seu argumento. Proporão acabar com o salário mínimo ou até outras proteções laborais e benefícios, pois já não é o dever das empresas garantir a subsistência dos trabalhadores. O RBI pode assim se tornar um veículo para a direita neoliberal extinguir o estado social e reverter importantes conquistas nos direitos laborais. Mesmo se o RBI for implementado sob as melhores circunstâncias, o que impedirá que os ciclos eleitorais eventualmente deem este argumento à direita? Ouviremos nessa altura que sustentar ambos o RBI e o resto da nossa rede de proteção social é demasiado para o orçamento e que não temos alternativa à extinção dessa rede.

Temos de considerar que a implementação de um RBI, no nosso atual sistema, será inevitavelmente moldada às vontades do capital. E não estará de certo nessa lista a libertação dos trabalhadores das amarras do trabalho assalariado.

Outro problema que o RBI falha em resolver é a crescente desigualdade social. Neste novo futuro teríamos na mesma uma classe capitalista altamente privilegiada que continuaria a extrair os frutos do trabalho da classe trabalhadora. Utilizar parte do valor acrescentado pelo trabalhador a pagar-lhe uma parte não é uma benesse, mas uma continuação do sistema injusto em que vivemos. Além disso, esquecemo-nos que uma parte dos lucros, que no melhor dos cenários pagariam um rendimento básico, virão de países no Sul Global, continuamente explorados por recursos naturais e para onde o trabalho físico ainda não automatizado foi exportado. Terão estes países direito ao seu RBI? Ou estaremos também a exportar para lá este novo custo?

Outros grandes projetos da esquerda entrarão potencialmente em conflito com esta medida. Um bom exemplo disto é o movimento do decrescimento. Apesar de haver quem encontre fortes argumentos para emparelhar os dois, a adoção de um rendimento básico universal trará um forte argumento para as economias ocidentais continuarem na trajetória destrutiva do crescimento económico. Pior, será decerto feito à custa da extração de recursos com menos dependência no trabalho, e com maior pressão sobre as economias do Sul Global e sobre o meio ambiente.

Desvalorizar o impacto orçamental desta medida também não nos ajudará a vendê-la. Uma simples multiplicação da população adulta portuguesa (aproximadamente 8,5 milhões) por um rendimento equivalente ao ordenado mínimo (760 € x 14 meses), cujo valor seria (discutivelmente) o suficiente para ser considerado básico, daria o gigantesco impacto orçamental de 90 440 milhões de euros. Este valor corresponde a perto de 86% da receita total do estado num ano, mais do dobro do valor que atualmente pagamos em prestações sociais e 81% do total da despesa atual. Como disse Aaron Bastani, jornalista e autor do livro Fully Automated Luxury Communism, no seu TED Talks: “Não sou um fã. E a razão é que um RBI acessível é ineficaz, e um RBI eficaz é inacessível.”

Devemos então questionar se não haverá soluções que carreguem menos risco. Será que vale a pena arriscar o nosso estado social e os nossos serviços sociais por uma promessa de emancipação que pouco faz para inverter as estruturas injustas socioeconómicas que causam a necessidade dessa mesma emancipação? Apesar dos problemas burocráticos no acesso a prestações sociais e da insuficiência dos programas sociais existentes, reforçar estes programas, ampliar as suas coberturas e simplificar o acesso a estas prestações será uma opção mais económica e eficaz. O acompanhamento humano dado por muitos destes programas poderá ter uma dimensão muito maior que uma transferência bancária.

Não devemos por isso ser precipitados quando defendemos o RBI. E devemos pensar se não nos sentimos atraídos por esta ideia enquanto pensamos num futuro utópico, quando, na verdade, ela tem de coexistir com a realidade do capitalismo. Devemos repensar como concretizar esta redistribuição garantindo que melhoramos a nossa rede de apoio social e adotando uma visão global sobre o seu impacto.

O DiEM25 integrou na sua proposta para o Novo Pacto Europeu aquilo a que chama de Dividendo Básico Universal rejeitando a proposta de um RBI financiado por impostos. Invés disso, a proposta é financiada por dividendos provenientes do capital. Este dividendo é justificado pela riqueza escondida que nós como sociedade criamos e da qual cada empresa pode beneficiar. Assim, esses dividendos seriam distribuídos diretamente de um fundo comum europeu, composto por rendimentos provenientes de: (i) compra de ativos por parte dos bancos centrais, (ii) uma percentagem das ações de empresas públicas durante a sua génese ou à procura de aumentar capital, (iii) taxas sobre a distribuição de direitos de autor sobre propriedade intelectual derivada de conhecimento público. Salvaguarda no mesmo texto que este DBU deveria coexistir com um estado social forte, dado que seriam financiados por fontes diferentes. Este DBU também seria uma ponte para democratizar algumas das instituições financeiras, financiadas pelos contribuintes, abrindo até a porta à participação de representantes democráticos nos seus conselhos administrativos. Enquanto este DBU resolve algumas falhas do RBI, criando uma redistribuição justa do valor gerado pela sociedade e apropriado pelas empresas, vale a pena refletir sobre se a sua dimensão assumirá o mesmo impacto.

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