Sobre o pacote de medidas para a habitação

O problema da Habitação tomou protagonismo nos últimos meses, com a população devidamente esgotada dos preços exorbitantes das rendas na cidade. Como consequência de um investimento económico de mais de uma década voltado majoritariamente para o turismo e a facilitação da entrada e residência de estrangeiros sob a égide dos vistos gold, a situação da população portuguesa chegou a um ponto limite que tem se expressado nas massivas manifestações realizadas nas últimas semanas e que se pretendem manter até a resolução do problema por parte do governo.

As medidas anunciadas pelo governo com exímia rapidez, nesse sentido, não são eficazes – a pressa é, sem dúvida, inimiga da perfeição. Mas o pacote tem também a marca do partido socialista e se aparentemente se propõe a resolver o problema com um pacote vasto e tecnocrata, no desenrolar dos dados se revela como um conjunto de medidas que coloca nas costas do governo o que seria, por este, considerado como prejuízo aos proprietários. Ele se dedica, nesse sentido, à amolfadar com dinheiro estatal o eventual estrago que as medidas de congelamento e limitação dos valores das rendas poderiam causar aos proprietários.

Das medidas anunciadas pelo governo, elencamos algumas para sinalizar qual é o tipo de esforço que o governo se propõe a fazer para resolver o problema da crise.

A primeira, e mais expressiva, é o arrendamento directo de casas aos proprietários privados, com o intuito de subarrendá-las por preços mais baixos. Isso significa um investimento económico estatal expressivo de ajuste entre os preços praticados pelo mercado e os valores de renda acessíveis, responsabilizando-se o Estado pelos estragos de um mercado desregulado. Em sentido similar, outra proposta é o subsídio, por parte do governo, de parte dos juros de famílias com empréstimos, novamente colocando na conta do governo os valores exorbitantes praticados pelo mercado da habitação.

Ainda tratando-se de (não) regulamento do mercado, a medida tímida, para não dizer retórica, de limitação das rendas é a limitação das rendas estabelecidas em novos contractos a um teto máximo. Concedemos à medida esses adjetivos por dois motivos: primeiro, ela só se aplica aos novos contratos; segundo, a regra é: para novos contratos, que sucedam a contratos celebrados nos cinco anos anteriores, a nova renda deve resultar da soma da última renda praticada com as atualizações automáticas anuais que, durante o período do contrato anterior, poderiam ter sido feitas. Acresce, ainda, o valor do objectivo de médio prazo do BCE para a subida da inflação de 2%”. Isso significa, em uma primeira instância, que o contrato terá limites de aumento em relação ao ano contratual anterior. Não se problematiza, nesse sentido, o valor exorbitante dos contratos já praticados no presente momento.

Ou seja, a medida impede que o absurdo se desenvolva à níveis estratosféricos, chegando aos 2mil euros em uma cave na penha de frança. Mas não se posiciona a respeito dos preços praticados actualmente.

Outras duas medidas relevantes são a proibição de novas licenças de alojamento local – parte de um regime de incentivo de regresso ao mercado de habitação frações habitacionais anteriormente dedicadas ao alojamento local – e a cessação de emissão de vistos gold. Um marche-arrière em relação à abertura ao investimento estrangeiro praticado nos últimos anos, movendo-se em uma direção desconhecida a partir de então. De facto, a população estrangeira pode ser considerada um factor determinante no aumento do preço das rendas em Lisboa, considerando sobretudo o facto de que essa população não partilha dos mesmos níveis salariais que a população portuguesa.

Os dados, entretanto, são parcos. E mesmo em termos de conhecimento do número de foros que pertencem à população estrangeira, quem são as maiores vítimas da crise habitacional, quão rotativa e precária está a vida da população, sabe-se pouco. O esforço de determinadas organizações em produzirem pesquisas e dados a esse respeito, nesse sentido, não deve ser menosprezado. Conseguir apreender a realidade e a precariedade em termos de habitação e mobilidade a que a população está sujeita é fundamental para entender os estragos da política de habitação das últimas décadas.

Uma coisa que se sabe, entretanto, é que 12% das casas em território nacional encontram-se vazias, descumprindo a lei de bases da habitação que obriga ao cumprimento da função pública da habitação. Não pode haver casas vazias em um país com moradores de rua e com parcelas expressivas da população sem direito à habitação. Mais do que o arrendamento directo de privados, o estado poderia, por exemplo, taxar as propriedades vazias com impostos progressivos, o que, ao contrário de obrigar o estado ao pagamento da diferença entre o arrendamento acessível e as rendas praticadas, geraria receita para o estado. Além disso, outra coisa que se sabe é que a resposta económica dada à crise económica da última década passou, excessivamente, pela priorização do investimento estrangeiro, possível pela entrada facilitada com vistos gold e a abertura de espaços como os de alojamento local para que o turismo pudesse florescer à contento. Política essa que, por sua vez, causou uma modificação profunda no próprio sentido de cidade em muitas regiões do país, nas quais Lisboa destaca-se.

A comodificação, a gentrificação, a transformação da experiência da cidade em um shopping, um museu, está inevitavelmente associada aos preços praticados pelas lojas de bens de consumo básicos; ao fechamento de lojas antigas por razão da pura força da especulação; à transformação dos laços de comunidade. Todos esses aspectos, ainda que aparentemente surjam como uma espécie de florescimento económico, revelam na verdade a violência mais básica do sistema económico que vivemos: a violência da expropriação dos territórios. Esses territórios, que são territórios de memória, de comunidade, de laços forjados entre moradores, vão sendo pouco a pouco carcomidos pela força da especulação imobiliária, chegando ao ponto insustentável em que nos encontramos agora. O alojamento local, a inda e vinda de comércios efémeros, a precariedade em termos de condições de habitação, de vida, é uma das marcas mais sinistras da violência do capital – ela torna os nossos espaços, os públicos e os íntimos, cada vez mais exíguos, cada vez mais restritos. Mesmo as associações culturais, espaços de cultura e de respiro da comunidade residente, vão perdendo espaço para infra-estruturas luxuosas.

Nesse contexto, o aumento do número de ocupações, as manifestações massivas contra os despejos, pela redução do valor das rendas e pela reorganização da política habitacional do país não é nada mais do que a luta pelo direito humano básico de viver em condições dignas. De poder permanecer em um território que pratique com coerência as condições de vida em termos de salário e o preço das rendas. As lutas se estendem por diferentes países da Europa e um movimento mais amplo, seja na figura do sindicato das inquilinas de Madrid, do Referendo da Habitação de Berlim, somam-se às mais recentes manifestações em Portugal, revelando que não se trata de um problema localizado, mas de uma forma de acumulação de capital que se replica em diferentes países europeus.

A habitação, a não utilização das casas como um dos mais rentáveis artigos de mercado de grandes proprietários, limitando o direito à cidade àqueles que podem pagar por ela e transformando as dinâmicas de comunidade e de bem comum em espaços privados, é sem dúvida uma das demandas mais importantes da população portuguesa e européia nesse momento. Que se possa morar, essa é a luta praticada no momento: que seja possível à população viver, com alguma dignidade, sob um teto que não seja o resultado das novas formas de acumulação de grandes proprietários, de novas formas de gerar lucro. Que a habitação , como direito básico universal, pare de ser transformada em outra grande produção maléfica do mercado desregulado, em que aquilo que deve ser o substrato da nossa vida – uma casa, um lar, uma comunidade – seja esgarçado completamente em nome do dinheiro e da acumulação de renda.

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