Para eliminar a violência sobre as mulheres, temos de abordar a forma como o poder se relaciona com o género.
A Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher emitida pela Assembleia Geral da ONU em 1993, define a violência contra a mulher como “qualquer ato de violência baseada no género, que resulte ou possa resultar em dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, incluindo ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária de liberdade, seja na vida pública ou na vida privada”.
Mesmo antes do NOVID-19, a violência contra as mulheres era uma das violações mais generalizadas dos direitos humanos, sendo que quase 18% das mulheres e adolescentes sofreram violência conjugal, física ou sexual durante um período de 12 meses.
Olhamos para os números e somos obrigados a fazer-nos diversas perguntas, numa vergonha silenciosa, num estado de deslocamento político e de confusão que se resolve num desamparo e desânimo generalizados. Com números tão grandes e terríveis: 243 milhões de mulheres e meninas que sofrem violência conjugal e abuso doméstico todos os anos, como fica a minha auto-estima? Como pode esta sobreviver sob uma opressão tão esmagadoramente compartilhada?
Trata-se de violência e poder.
Num mundo onde mulheres, meninas e corpos feminizados são silenciados física, emocional, psicológica e socialmente, os números desses horrores contam a história de uma violência de proporções sistémicas e opressivas: o poder tem realmente um género.
“Quando um marido espanca a sua esposa, trata-se violência pessoal, mas quando um milhão de maridos mantêm um milhão de esposas oprimidas, isso constitui violência estrutural”.
— Johan Galtung,1969
A violência contra as mulheres, embora seja classificada como uma questão de direitos humanos, infelizmente não é inexplicável nem é uma anomalia nas nossas sociedades.
Os corpos mutilados de meninas, os corpos mortos de mulheres, as mulheres encarceradas em estruturas sociais opressivas ou de servidão, as mulheres psicologicamente apagadas, as mulheres e meninas migrantes e que vivem em limbos de precariedade, assim como em campos e zonas de guerra: são pontos de fracasso pelos quais ninguém quer assumir a responsabilidade. Rejeitadas e abjetas, elas tornam-se a responsabilidade dos esforços de ajuda humanitária e são tratadas dentro de uma lógica de crise neoliberal. As dificuldades reais destas mulheres e meninas tornam-se percentagens e moedas de troca em negociações, que as desumanizam e apagam efetivamente.
Qualquer mulher é uma interseção de vulnerabilidades e precariedades.
Na manhã do dia 25 de Novembro, milhões acordaram com as notícias de femicídio na Itália: no mesmo dia em que o mundo chora o horror e a magnitude desta violência, duas mulheres são encontradas mortas pelo seus cônjuges. Mas a notícia destas mortes foi além dos factos, das circunstâncias e da história de violência. Os repórteres e jornalistas foram rápidos a arranjar respostas: crimes de paixão e ciúmes. A urgência que os jornalistas têm de dar respostas e motivos, e declará-los como factos, tem um só objetivo: travar a narrativa do feminicídio como como se fosse uma questão pontual e individual.
A mulher trai o imperativo masculino, ameaça o seu lugar na sociedade, nega-lhe sua prerrogativa e é punida com a morte: como vítima, ela deixa de ser um problema. No momento da morte, o corpo da mulher revela-se como um “local denso de complexas histórias de opressão” (Judith Butler), uma morte que é ritualizada e recontada repetidamente, um sacrifício necessário e inevitável à excepcionalidade masculina, com o propósito de oprimir uma possível dissidência.
O Estado de direito e os tribunais podem ou não provar a culpabilidade desses homens.
A violência de género muitas vezes não faz notícia – está no reino do terror privado consagrado em estruturas familiares e costumes culturais. Como diz Mona Eltahawy: “O Estado, a Rua e o Lar podem todos conceber o poder de uma revolução feminista… são o grande trio da misoginia”.
Os Estados são criados como máquinas que lidam com crises e rupturas que, de facto, utilizam cada vez mais essas crises como seus momentos definidores. Momentos ordinários e não convencionais de violência, de horrores quotidianos, não registados, tornaram-se ilegíveis e fazem do Estado e dos seus órgãos institucionais, cúmplices pela sua relutância em agir. Afinal, o Estado, para todos os efeitos, é um ‘corpo’ CisMasculino.
“Mudar o entendimento da violência como algo excepcional, para entender a violência como algo que pode ser habitual e recorrente, é particularmente apropriado para ver as formas de violência de género”.
— A J Innes, B J Steele, 2019
O lar torna-se o teatro preferido para a execução desses atos de opressão sistémica. É nas relações familiares que o abuso é perpetrado (13% da população mundial feminina e trans).
O lar tornou-se o lugar onde o mundo inteiro se refugiou durante a pandemia. Isto levou a uma pandemia paralela de violência doméstica com um aumento de até 40% no número de abusos relatados.
O corpo feminino só volta ao domínio público quando é morto e tem que encontrar um novo lugar de pertença.
De quem é o corpo da mulher morta?
Ele não pode existir no limbo. Tem que ser contabilizado (de fato, em várias partes do mundo e especialmente no México e nos EUA os corpos desaparecem, levando o apagamento a um nível epidémico), e neste momento de crise, entre o momento da morte e a afirmação de culpa, este momento é preenchido com as narrativas tranquilizadoras do patriarcado, quando o perpetrador é invariavelmente desculpado por seu crime de paixão com o objetivo de restabelecer sua honra.
Num sistema político e económico que monopolizou todas as decisões morais e políticas, a família e o corpo da mulher tornam-se o teatro do poder patriarcal.
Nós da “Taskforce for Feminism, Diversity and Disabilities” entendemos que o feminismo é a pesquisa de como o poder funciona: Não existe mulher, criança, corpo negro, trans, que não tenha sofrido com desdém, que não tenha sido silenciada e tornada irrelevante, marginalizada na sua própria concepção de como o espaço deve ser ocupado (ou desocupado, mais precisamente). Aprendemos a ceder, a arranjar desculpas, a segurar a língua, a esconder-nos em desespero e encontrar consolo na abjeção ou objetificação. Podemos até agarrar-nos aos pequenos privilégios que possamos ter, apenas para sobreviver.
É por isso que estamos a lançar uma campanha no DiEM25 que aborda a violência doméstica em 2021, como parte do nosso trabalho contínuo de consciencialização sobre o assunto.
Se o género é relacional, no sentido em que privilegiar as qualidades masculinas é dependente e promove-se através da desvalorização das qualidades femininas, não seria, portanto, lógico investigar e compreender como tal relação de poder pode ser intersectada com relações de poder similares? Por exemplo, raça, classe, deficiências: todos são espaços onde o poder exerce o seu músculo e cria relações sociais, económicas e políticas construídas sobre privilégios relacionais similares, que requerem a desvalorização como intrínseca para persistirem.
As desigualdades estruturais precisam de ser resgatadas da política de crise.
Precisamos de uma compreensão global da violência. Assim como um Green New Deal para a Europa que nos mostre o caminho, que reconheça as perspectivas globais da economia e do meio ambiente, lendo a violência contra as mulheres como uma interseção das relações de poder. A incapacidade de ver a inter-relação de todos os tipos de violência de género, serve para perpetuar o ciclo e permite que as relações de poder permaneçam ocultas e sem escrutínio.
As enormes implicações sociais, económicas e políticas da opressão e do apagar de 243 milhões de mulheres por ano, não podem ser subestimadas. Os custos anuais da violência dos parceiros íntimos foram calculados em US $5,8 mil milhões nos Estados Unidos da América e US $1,16 mil milhões no Canadá. Na Austrália, a violência contra mulheres e crianças custa cerca de 11,38 mil milhões de dólares por ano. Só a violência doméstica custa aproximadamente 32,9 mil milhões de dólares na Inglaterra e no País de Gales.
A campanha da ONU #orangetheworld está em andamento até o final do mês.
Podes contribuir para ajudar a conceber esta campanha, contactando-nos: fdd@diem25.org
Fonte da fotografia: Fotografia de Karolina Grabowska da Pexels.
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