Em 24 de Março de 2021, o Supremo Tribunal do Brasil declarou Sergio Moro como tendo sido tendencioso num dos maiores e mais publicitados julgamentos de corrupção na história do país. Todos os julgamentos e acusações de corrupção contra Lula Ignacio da Silva, o antigo presidente, foram abandonados.
O que aconteceu? Lula foi realmente corrupto? Ou a sua prisão, cronometrada para impedir a sua candidatura nas eleições gerais de 2018, abriu o caminho para a presidência de Bolsonaro? Antes da sua condenação, a projeção eleitoral de Lula estava nuns sólidos 35%, comparados com os 13% de Bolsonaro. Enquanto o antigo presidente estivesse a concorrer, Bolsonaro e a sua agenda da ala direita não teriam qualquer hipótese de vencer.
Uma onda de descontentamento popular varreu o Brasil com as manifestações do Passe Livre de 2013, que começaram no Rio de Janeiro e tomaram as maiores cidades do Brasil, rapidamente nos calcanhares dos movimentos da Primavera Árabe de 2011 e Ocupar Wall Street. Em 2014, o país iria acolher o Campeonato Mundial de Futebol, e enormes projectos de construção apimentaram as capitais de estado. O Campeonato do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos do Rio de 2016 tinham sido atribuídos ao Brasil durante as presidências Lula e foram uma confirmação de que o país tinha conseguido entrar no clube dos grandes: em 2011, era a quinta potência económica mundial e membro fundador dos BRICS em 2009.
Lula da Silva deixou a presidência após dois mandatos altamente bem sucedidos com uma taxa de aprovação sem precedentes de 87%, crescimento económico de 7,5% (construído sobre os dois motores de mercadorias e consumo) e uma moeda forte. Um homem do povo, um ex- metalúrgico e líder sindical, tinha transformado o Brasil numa força económica com que se podia contar.
O Brasil como Estado foi criado a partir do que restava de uma colónia portuguesa de escravos. A sua economia foi construída sobre mercadorias agrícolas e minerais utilizando o modelo extrativista colonial e o modelo de mão-de-obra com baixos salários herdado do comércio de escravos. A onda de descontentamento que varreu o país a partir de 2013 e se dirigiu aos sucessivos governos do PT após a crise financeira mundial de 2008 (após os máximos económicos de 2009-2011) foi vista pelas elites como uma oportunidade para retomar o controlo do país e dos seus recursos: ainda mais após a descoberta das enormes reservas de petróleo, conhecidas como o Pré-sal, nos fundos marinhos do litoral do Rio de Janeiro.
As duas presidências de Lula tinham conseguido uma mobilidade social sem precedentes
Tiraram milhões de pessoas da pobreza, e tornaram o Brasil um líder económico e ambiental mundial. Em resposta, o ódio contra Lula e o seu partido de trabalhadores foi alimentado diariamente durante anos:
“Hoje vivemos numa época em que o ódio contra o PT é alimentado 24 horas por dia. É o partido que mais tem avançado as políticas sociais neste país. O partido que, em apenas 12 anos, mudou a história deste país. Demos um rosto aos trabalhadores; demos um rosto e cidadania aos pobres. Tudo o que eles nunca tiveram. É por isso que o ódio é fomentado por pessoas que não sabem como partilhar espaços públicos com pessoas que vieram de baixo”.
De facto, o milagre económico do Brasil tinha um rosto: as pessoas, uma nova classe média a sair da pobreza e abjecção, começando a povoar os centros comerciais, a maximizar os seus novos cartões de crédito, a tirar férias na Europa e na disneylândia na Flórida.
Os impérios mediáticos pertencentes a algumas das famílias mais ricas do Brasil (grupo Globo e Folha) tinham travado uma guerra implacável contra Lula e o seu partido dos trabalhadores (PT) desde os anos 70, no início da sua carreira como sindicalista metalúrgico. Lula disse celebremente, durante os julgamentos por corrupção orquestrados contra ele, que nunca tinha tido qualquer privacidade judicial. A sua vida foi escrutinada e divulgada desde o início da sua carreira política em 1972, procurando formas de impedir a sua ascensão à presidência. A sua primeira tentativa de eleição foi marcada por mentiras e manipulações por parte dos meios de comunicação social.
O derrube judicial de 2016 do quarto governo do PT consecutivo, foi o culminar de anos de trabalho das forças reaccionárias de direita do país, lideradas por elites bilionárias que chamaram em seu auxílio uma vasta rede de congregações neo-pentecostais, os serviços de inteligência dos EUA, os militares, bem como partes do seu poder judiciário na força de trabalho anti-corrupção Car Wash. Como revelado através de numerosas fugas de informação, o golpe foi a única forma de instalar um governo de direita oligárquico, contornando por completo qualquer processo democrático. Um golpe articulado com o poder do maior império mediático do país, que abriu caminho a Bolsonaro e ao seu governo neo-fascista.
Após o golpe judicial de 2016, houve uma erosão constante de todos os avanços sociais e económicos ganhos pelo povo do Brasil. Isto tem ocorrido através de uma série de manobras legislativas, exacerbadas na presidência de Bolsonaro e no seu desmantelamento programado das infra-estruturas sociais e económicas do país, proteções ambientais e posição internacional: políticas apoiadas e avançadas pela empresas de comunicação e as elites, que vêem a mobilidade social como um obstáculo ao seu modelo empresarial. De facto, a elite brasileira e o seu poder económico estão entre os que menos acreditam na distribuição da riqueza ou na devolução ao país e à sua população. De facto:
“Para as elites que extraem a sua riqueza de pedaços no Estado, a produtividade e a mobilidade social são irrelevantes”.
Com a eleição de Bolsonaro, o Brasil entrou em pleno movimento na sua própria contra-revolução de direita.
Infelizmente, os meios de comunicação e os seus proprietários ganharam uma batalha importante. No momento da redacção deste artigo, o país é dilacerado por um número que conta mais de 3.000 mortes diárias por covid-19. Também sofre de uma economia prejudicada pelo regresso à pobreza de milhões de brasileiros, a venda de bens estatais a investidores privados, o fim das políticas sociais e educativas que tinham beneficiado milhões de pobres e trabalhadores, bem como uma destruição sem precedentes da floresta amazónica e dos seus recursos, às mãos de madeireiros e mineiros ilegais. O ecocídio nas florestas e o genocídio das populações indígenas remetem para as políticas destrutivas das elites e ditaduras militares. Bolsonaro e os seus filhos – 3 em 4 foram eleitos – são apologistas do golpe militar de 1964 e defenderam o direito de o comemorar a 31 de Março.
Bolsonaro, longe de ser um presidente inepto e incompetente, sem maturidade, como é frequentemente retratado, está totalmente alinhado com outros líderes de direita e neo-fascistas na política e na sua postura. Os seus mentores e líderes ideológicos são figuras de extrema-direita, como o caseiro Olavo de Carvalho e Steve Bannon, que tem recrutado o clã Bolsonaro para as suas visões apocalípticas do mundo.
Começou a surgir uma narrativa mediática dominante que coloca Lula e Bolsonaro como dois populistas extremistas, fazendo de uma possível corrida eleitoral em 2022 entre os dois uma escolha difícil e complicada. Mas não se enganem: Lula no seu discurso de regresso defendeu a educação pública e a saúde, a ciência, e pregou o diálogo com todos os sectores da sociedade. A sua polarização é contra o autoritarismo e a política de morte de Bolsonaro. Enquanto as elites podem enganar o regresso de Lula como um perigo para a sua hegemonia, o país, o continente, está à beira do colapso ecológico e económico.
As opiniões aqui expressas são de responsabilidade do (s) autor (es) e não refletem necessariamente as políticas ou posições oficiais do DiEM25.
Fotografia: Lula abraçado depois do anúncio da STF.
Fonte da fotografia: Ricardo Stuckert em Fotos Publicas.
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