“Somos uma família pobre”: como o caso da Nobre é um sintoma da doença capitalista

Depois das manifestações e greves dos trabalhadores e trabalhadoras da Nobre Alimentação, fica mais uma vez claro que a máquina de gerar lucros que é o capitalismo não cumpre o seu propósito na sociedade.

Recentemente, com grande taxa de adesão, as trabalhadoras e trabalhadores da Nobre Alimentação – conhecida pelo fabrico de enchidos – organizaram greves e manifestações, utilizando essas ferramentas fundamentais para expressar o seu profundo descontentamento em relação à empresa. Lutam por salários mais altos, carga horária mais baixa e mais dias de férias, para além de um sistema de progressão nas carreiras que, até agora, parece ser completamente inexistente. Nas manifestações, a falar à comunicação social, uma das funcionárias afirma que a empresa criou um lema interno que usava para comunicar às pessoas que lá trabalham: “Somos uma família Nobre”. As manifestantes aproveitaram para virar este lema do avesso e trazê-lo para a realidade que conhecem: “Somos uma família pobre”.

A inércia na subida dos salários

Na reportagem da SIC Notícias acima mencionada é dito que a esmagadora maioria da força de trabalho da Nobre recebe o ordenado mínimo permitido por lei. Isto pode, à primeira vista, parecer uma exceção à regra, mas não é. É apenas o capitalismo a funcionar. Nele, as pessoas são um recurso como qualquer outro; um custo a ser minimizado de forma a maximizar o lucro. Isto é provavelmente intuitivo: quem tem o poder (ou capital) vai querer mantê-lo e fazê-lo crescer.. De 2020 para 2021, os lucros da Nobre aumentaram, enquanto que o custo com pessoal diminuiu. E assim, a fatia da receita que vai para os donos aumenta..

Vendo deste prisma, percebemos que os salários baixos não são mais do que a escolha “racional” do empregador: para maximizar os lucros dos acionistas, terá que minimizar os salários de quem produz a riqueza. No caso da Nobre, como em tantos outros sítios por Portugal, pela Europa e pelo mundo fora, isto é verdade. E não o deixará de ser enquanto não mudarmos radicalmente o nosso sistema económico.

As vendas ao capital multinacional

Outro aspeto incluído na reportagem é a notória degradação das condições de trabalho a partir do momento em que foi vendida  a gigantes multinacionais. Desde que saiu da posse da família original (a família Nobre), a empresa de alimentação já passou por mãos espanholas, chinesas, até chegar aos seus atuais donos, um grupo mexicano chamado Sigma (que, por sinal, pertence, por sua vez, a uma corporação chamada alfa).

O que é de relevar aqui é que, no mercado internacional dos “billions”, as pessoas são um mero produto. Da mesma forma que eles compram e vendem fábricas, maquinaria e terrenos, também compram pessoas. Passamos a ser apenas mais uma célula na sua ultra-eficiente folha de Excel. E quando somos uma célula numa folha de Excel, o objetivo torna-se um: aumentar o número na última linha da folha.

“Somos uma família Nobre”

Internamente, a gestão da Nobre tenta convencer os trabalhadores e trabalhadoras de que pertencem a uma família. Esta tática, que é utilizada internamente dentro de várias empresas, serve como uma tentativa, muitas vezes conseguida, de tornar os trabalhadores mais “dóceis”, fazendo com que, por exemplo, se torne taboo falar sobre salários com as colegas – dado que toda a gente deve trabalhar por amor à camisola ou, neste caso, à família – ou que surja um sentimento de culpa ou traição por queremos pertencer a sindicatos ou organizar greves.

É de louvar o génio do marketing que, pela primeira vez, se lembrou de usar a expressão “família” desta forma. Para muitas de nós a família é um aspeto nuclear da vida. São pessoas pelas quais temos emoções muito fortes, muitas vezes positivas, mas, acima de tudo, uma ligação intangível quase inegável. Sacrificamo-nos por família, mesmo quando discordamos. Sentimos uma forte vontade de a ajudar a superar qualquer desafio, mesmo depois de passar por maus momentos. Não é, por isso, coincidência, que as empresas não usem termos como “comunidade” ou “vizinhança”. A família toca-nos num lugar especialmente profundo, do qual se tentam aproveitar.

A política de intimidação como recurso de desespero

O trabalhador favorito de um acionista é o trabalhador solitário; aquele que não comunica com os seus colegas, aquele que não é confrontado com a sua própria falta de direitos. E é exatamente isto que uma união (quer na forma de sindicato ou não) dá às pessoas. A união dos trabalhadores oferece a oportunidade de, democraticamente, se organizarem, debaterem e pensarem em soluções para os problemas. Chegado ao ponto em que as trabalhadoras e trabalhadores conseguiram organizar-se, vemos imediatamente a reação natural por parte da gestão: o medo. Sem capacidade de produção, a empresa não consegue responder aos seus clientes, perde receita e pode mesmo gerar graves prejuízos financeiros. Tudo isto se reflete na valorização da empresa e nos ganhos dos seus donos.

E é, por isto mesmo, que este medo dos chefes e acionistas se transforma numa reação defensiva e agressiva, o que começa com  indiretas acerca de sindicatos, um dia talvez acabe com ameaças de despedimentos caso haja greves. E aqui entra o papel fundamental da união. Sozinha, nenhuma pessoa tem a capacidade de se opor a tais ameaças. Juntas, as pessoas conseguem equilibrar a balança do poder. Mas continua a não ser fácil. Às vezes há vitórias, outras vezes não. E essa é a vida em capitalismo: uma constante necessidade de lutar.

Posição do DiEM25: as cooperativas como solução empresarial

Existe uma alternativa. Uma alternativa justa, desenhada para organizar as empresas à volta de suprir necessidades e vontades humanas, de forma sustentável. Chama-se cooperativa.

Cooperativas são empresas sem fins lucrativos controladas democraticamente pelos trabalhadores, que, em igual parte, detêm o capital da empresa. Para além disso, as cooperativas devem seguir um conjunto de princípios. Um destes é que devem cooperar com outras cooperativas, criando uma rede nacional e internacional de empresas focadas nas pessoas, e onde o principal objetivo é suprir necessidades e desejos, não gerar lucros. Aliás, o conceito de lucro, de certa forma, desvanece! As receitas da empresa são distribuídas igualmente por todos os membros da cooperativa ou reinvestidos, caso os membros achem que esse é o melhor uso das receitas.

Façamos um exercício criativo: como seria a Nobre se, em vez de uma empresa capitalista, controlada pelos acionistas, fosse uma cooperativa, controlada democraticamente pelas trabalhadoras? O primeiro passo seria criar os estatutos que guiam como a cooperativa funciona no seu dia-a-dia – que trabalho se faz, que funções existem dentro da empresa, etc.. Estes estatutos seriam escritos, revistos e votados por todas as trabalhadoras. O segundo passo seria, provavelmente, eleger alguns órgãos de gestão, como uma administração e um conselho de ética, por exemplo. Note-se a maneira como estas pessoas chegam ao poder: por eleição, não por nomeação ou contratação externa; qualquer pessoa que pertença aos órgãos tem obrigatoriamente de ser membro da cooperativa. A partir daqui, toda a gestão e trabalho do dia-a-dia é gerido pelas mesmas pessoas que fazem o próprio trabalho. São elas que decidem os seus salários, são elas que decidem quando comprar maquinaria nova, que alimentos produzir, quando trocar a fábrica de local, quantos dias de férias acham adequados, onde e com que frequência realizar jantares de empresa, e tudo o mais que se possa imaginar para o dia-a-dia da Nobre. Não esquecer: como em toda a boa democracia, há rotatividade; a cada ano, ou qualquer período decidido, serão realizadas novas eleições para os órgãos da empresa, garantindo assim que não existe uma pessoa ou pequeno grupo que toma a cooperativa pelas rédeas para ganho próprio. E assim se poderia gerir a Nobre democraticamente.

Atualmente, em Portugal e pelo mundo, existem inúmeras cooperativas bem sucedidas. Muitas delas operam na área da alimentação ou da produção agrícola. No entanto, há já exemplos mais recentes de cooperativas a funcionar em áreas tipicamente “reservadas” ao capitalismo mais puro, como é o exemplo da cooperativa The Drivers Cooperative, em Nova Iorque. Uma cooperativa nativamente digital, que compete com gigantes como a Uber ou a Bolt. É apenas um exemplo de como as cooperativas podem ser uma das ferramentas nucleares numa sociedade pós-capitalista, mais justa e que proporcione uma melhor vida a todas as pessoas.

O DiEM25 apoia a luta das trabalhadoras e trabalhadores da Nobre, assim como de todas as outras pessoas que lutam pelo seus direitos, pelo seu bem-estar e pela sua liberdade. Temos como um dos nossos objetivos fazer uma transição justa para uma sociedade e economia pós-capitalistas, onde todas as pessoas têm os seus direitos concretizados, incluindo nos seus trabalhos.

O DiEM25 em Portugal convida-vos para o debate “Economia e Liberdade: podemos ser livres no sistema capitalista?” na segunda-feira 8 de maio, às 20h30. Mais informação aqui

Filipe Medeiros

Pelo DiEM25 em Portugal

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