Não façamos, em Portugal, dos nossos jovens uma fonte alternativa barata de lucro, como na Holanda. Apesar do quadro glorioso que a IL pinta, de longe, dos Países Baixos, consegue-se, de perto, ver que as cores com que o pinta são baratas e desbotadas. A nossa juventude merece muito melhor
Todos sabemos que um dos grandes heróis europeus da Iniciativa Liberal é a Holanda. Sempre que Rui Rocha sobe ao púlpito, ninguém estranharia que a sua primeira frase fosse um assertivo “na Holanda, o mercado funciona às mil maravilhas”. Ora, vivendo eu precisamente nesse país, gostaria de falar de uma dessas maravilhas, uma que escapa bastante o escrutínio público.
À semelhança dos Estados Unidos, um país que espelha muitas das políticas neoliberais do governo de Mark Rutte, antigo líder do VVD, de centro-direita, que transita agora para a tentativa infrutífera de se formar o governo de extrema-direita de Geert Wilders, líder do PVV, a Holanda é um país que se orgulha e se vangloria do sucesso da sua economia. No entanto, para além dos salários altos (e impostos tão altos como em Portugal, diga-se), por detrás desse sucesso discutível, encontra-se um pântano de abusos económicos e subterfúgios. Um deles é a exploração infantojuvenil, pouco falada entre os holandeses, um povo pragmático e assumidamente neoliberal.
A exploração infantil esteve sempre subjacente ao espírito capitalista, como se viu durante a revolução industrial e o grande boom das grandes fábricas inglesas, onde as crianças eram frequentemente utilizadas como mão de obra barata para executar tarefas que saíam bem caro à sua saúde e bem-estar e onde não era incomum morrerem acidentalmente nas fábricas. Atualmente, a exploração infantil assume uma máscara mais woke, visto que também a direita já define o que, para si, e subversivamente, é inclusivo.
Evidentemente, o caso não é tão bicudo como durante as várias revoluções industriais, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos. Na Holanda, os adolescentes a partir dos 13 anos trabalham com relativa segurança, maioritariamente nos supermercados. É frequente, mesmo nas cidades mais periféricas do país, ver-se crianças a trabalhar nas cadeias do Jumbo ou Albert Heijn, duas das principais marcas de supermercados holandesas. No entanto, existem leis que proíbem os patrões de abusar no número de horas de trabalho, já que só trabalham em regime de part-time e sob supervisão.
Em Portugal, o trabalho infantil é apenas permitido após se concluir a escolaridade obrigatória, mas apenas a partir dos 16 anos de idade. Na Holanda, a escola não é impedimento para que as grandes cadeias de supermercados reforcem as suas equipas com mão de obra barata visto que os trabalhadores adultos rejeitam os salários baixos oferecidos (16,95 € por hora, apenas um pouco acima do salário mínimo holandês: 13,27€). Assim, o mercado compensa através de uma exploração subversiva dos mais jovens, alegando: “Eles gostam de estar aqui. Gostam de estar com os amigos.” O que ainda torna esta situação mais perversa, pois usa-se a vontade de convívio destes jovens para extrair deles mais lucro.
Para além disto, há ainda a ideia de hierarquia e de mérito subjacente a este modelo, reforçada através da distribuição salarial destes trabalhadores, visto que os salários sobem consoante a idade do trabalhador jovem. Ou seja, um trabalhador dos 13 aos 15 recebe nestes supermercados, segundo o sítio de um destes, 5,62 € (um pouco mais do que o salário mínimo por hora para esta faixa etária, que são 3,98 €). No entanto, a partir dos 16, há uma inversão nesta lógica aparentemente igualitária. Aos 16, um trabalhador jovem recebe 6,49 € por hora, realizando já tarefas como padeiro, talhante, operador de caixa, etc. Ou seja, tarefas que um adulto já poderia realizar por 16, 95 € por hora, um pouco mais do dobro do que um trabalhador jovem, com as mesmas funções e carga horária, ganha. De relance, parece um simples sistema de remuneração com base em hierarquia, o problema é que a experiência de um trabalhador de 16 anos, perfazendo este 21, é bem superior à de um trabalhador adulto sem qualquer experiência, acabado de entrar no mercado de trabalho. No entanto, recebem o mesmo. Poder-se-ia dizer, então, que este sistema promove a ideia de uma gerontocracia salarial.
Para além disto, não é incomum estes jovens aderirem à ideia de “se queres, trabalha” exercida sobre eles pelos mais velhos. Assim, durante a adolescência, idade formativa fulcral, os jovens interiorizam que o capital está sempre associado ao mérito, quando, como já referi, a distribuição salarial é tudo menos meritocrata. Mas, sobretudo, é tudo menos justa. Isto promove também, como se vê muito nos holandeses, em geral, um espírito individualista e menos solidário.
Para além disto, tem-se notado uma redução do número de trabalhadores adultos, quer holandeses, quer imigrantes, nos supermercados holandeses, porque a remuneração é parca. De acordo com uma fonte que já neles trabalhou, os patrões tendem a preferir contratar os trabalhadores mais jovens, sobretudo aqueles a partir dos 16 anos, porque lhes pagam menos.
Para além da exploração laboral neste ressurgimento do trabalho infantil, há que ter em conta que isto abre precedentes perigosos a empresas pouco escrupulosas. É frequente ler-se nas notícias norte-americanas como os jovens, sobretudo aqueles entre os 15 e os 18, sofrem frequentemente acidentes de trabalho graves, chegando alguns mesmo a morrer. Em 2023, o Departamento de Trabalho dos EUA até já condenou o aumento fulminante do trabalho infantil após a morte de mais um adolescente. Estes acidentes fatais dão-se sobretudo em matadouros, na construção civil, em serrações, etc, mas, segundo um artigo do Guardian, também na restauração, neste caso na cadeia estadunidense de fast-food, McDonald’s, tem existido um aumento de violações das leis laborais que protegem os menores de idade.
Não façamos, em Portugal, dos nossos jovens uma fonte alternativa barata de lucro, como na Holanda. A dignidade dos mais jovens deve-se salvaguardar incentivando a sua educação contínua, o debate, o espírito crítico, o convívio, etc, para que, na idade adulta, tenham plena consciência dos seus direitos e, assim, possam exigir salários dignos. Apesar do quadro glorioso que a IL pinta, de longe, dos Países Baixos, consegue-se, de perto, ver que as cores com que o pinta são baratas e desbotadas. A nossa juventude merece muito melhor.
This article was originally published by Esquerda and has been re-published with permission. You can read the original article here.
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